Eduardo Cintra Torres

Telegramas do País Silvestre


Maratonas informativas: a nova direcção de programas e informação da RTP lá começou fazendo o que pode com as migalhas que sobraram da anterior. Sem dinheiro, uma direcção pouco mais faz do que gestão de tempo. E, assim, a informação, mais barata que os programas, começou a encher algumas noites com loooooooonguíssimos programas de debate.

Em Lisboa, José Alberto Carvalho empastelou mais de duas horas sobre as dificuldades da vida dos pobres tendo por irónico cenário um átrio de centro comercial. A involuntária metáfora: da mesma forma que estes trabalhadores aqui entrevistados só podem vir ao "shopping" ver as montras, nós também não temos dinheiro para vos fazer ver aí em casa outro tipo de programas. Depois, na antiga Prisão da Relação, no Porto, a violência doméstica. Outra metáfora: ficámos presos durante outras duas horas. Finalmente, o novo Prós e Contras, que substitui com vantagem o demagógico, populista, peixeirante e fascistóide Gregos e Troianos. Mas com o mesmo defeito: 136 minutos, duas horas e tal! "Stagecoach", de John Ford, tem 96 minutos, "Casablanca", de Michael Curtiz, tem 102.

Canal Parlamento: valeu a pena escrever e insistir que o Canal Parlamento era uma tolice, propor alternativas, e valeu a pena ter aguentado com a resposta sobranceira e cheia de piedosa pedagogia democrática do então presidente da Assembleia, Almeida Santos, que "ralhou" comigo a propósito da minha crítica. O canal está agora reformulado e começa a fazer sentido televisivo.

O que sabe bem são bons programas: volta não volta, a RTP sofre um ataque agudo de servicite pública, doença típica das TV europeias de Estado inseguras do seu trabalho. Agora a RTP inventou um "slogan" segundo o qual "sabe bem ver a televisão pública". Este conceito enquadra-se numa linha de análise com origem na epifania do estudioso Raymond Williams na sua primeira noite de televisão na América, depois de um dia de viagem de Londres a Miami, no ano de 1975. Ele descobriu que a TV é um "fluxo", o que conta na experiência do espectador é o fluxo, pelo que a TV comercial estaria organizada para criar essa sequência indiscriminada e interminável de tempo televisivo. Supostamente, a RTP é agora um fluxo de "televisão pública" que sabe sempre bem, seja na publicidade, nas televendas ou na telenovela Carita de Anjo.

À utilização de fluxo para caracterizar toda a emissão da RTP como "serviço público" junta-se a tenebrosa e prejudicial tautologia, implícita no "slogan", segundo a qual "serviço público é bom porque é serviço público". Não é verdade. O que há é bons ou maus programas. E há programas que servem o público melhor que outros, sejam ou não emitidos pela concessionária. Em resumo: o "slogan" revela que os vícios de pensamento do pessoal dirigente da RTP são os mesmos de sempre. Não compreendem que os espectadores não "vêem fluxo", os espectadores não "vêem televisão pública", porque isso é um conceito e um conceito é uma coisa que não se vê. O que os espectadores vêem são programas ou pedaços de programas. Vêem coisas concretas.

E já agora não acabem com bons programas concretos: acabaram três bons programas da RTP. Todos ficavam bem numa concessionária de TV do Estado: o noticiário para miúdos, Caderno Diário, e dois concursos para jovens, Turma das Ciências e Clube da Europa. O Caderno Diário tornava as notícias acessíveis aos mais novos, num processo de introdução prática à cidadania de muito valor. Os dois concursos eram uma forma lúdica saudável de espicaçar conhecimentos. Quem soubesse mais sobre ciências ou sobre a Europa ganhava prémios. São raros os programas dedicados só à juventude e mais raros os que têm qualidade. É inacreditável que o valor de "serviço público" não tenha sido tomado em conta nestes casos. Estaremos perante os vícios de sempre - os programas não tinham "audiência" que justificasse o custo? Será o costume - só conta a audimetria, não o serviço público que os programas possam prestar?

E por falar em audimetria: assustados com as quebras de audiência, de publicidade e receitas, os operadores privados puseram a correr que a culpa é da audimetria, porque não é possível que a televisão tenha perdido 15 por cento do público nos últimos quatro anos. Esticaram os números e deram-lhes a volta. De facto, a audimetria mostra que a TV perdeu audiência, mas a descida do "rating" foi de 9,3 por cento. A televisão por cabo aumentou para o dobro. Portanto, quem justifica a descida é a própria televisão generalista, averbando uma queda de 15 por cento de "rating" em quatro anos.

Seria bom que os responsáveis da TV generalista (RTP, SIC e TVI) olhassem também para os seus programas em vez de olharem apenas para os números da audimetria. É certo ser estranho que não haja quebras de audiências gerais em países como Espanha e França e haver em Portugal. Mas era bom que os operadores ao menos pusessem a hipótese de haver menos gente em frente do televisor por culpa dos programas que apresentam.

Repetições a mais: os operadores generalistas repetem actualmente "ad nauseam" os seus programas - não apenas os bons programas e filmes, mas também os programas pastilha-elástica, de mastigar e deitar fora, como "talk-shows", "big brothers" e afins. Uma fatia substancial do tempo da TV generalista é gasto com repetições, o que sucede em Portugal, mas não noutros países europeus. É raro o programa que ganha novas audiências com a repetição a outras horas; e em geral, as pessoas que os vêem à noite também os vêem à tarde. Por isso, a maior parte apresenta "ratings" insignificantes. Quais as razões para esta "estratégia"? Primeiro, a falta de dinheiro: há programas cuja repetição não tem custos para o operador. Segundo, a pouca audiência de manhã e de tarde: é preferível aos operadores encher chouriços a investir nesses horários. Como em consequência, também não ganham novos espectadores, os operadores generalistas criam os seus próprios pântanos em parte da emissão.

E por falar em repetições: também há programas bons para rever. A RTP2 reapresenta agora Palavras Ditas, de Mário Viegas e realização de Nuno Teixeira (1984). É um dos bons programas culturais da história da RTP. Conseguiu transformar a poesia em televisão. Por exemplo: no primeiro episódio, Viegas apresentou duas encenações opostas, representadas por Raquel Maria, do poema telegráfico de Alexandre O'Neill "JORGE/Podes vir./Mamã, enfim, morta." Numa das versões, uma mulher do povo diz o telegrama, tristonha por dar tal notícia, enfim, ao Jorge. Na outra, uma libidinosa diz ao Jorge que o caminho está livre para ambos. O espectador pôde ver a polissemia, a riqueza de interpretações contida num texto.

É pouco importante que Viegas não recitasse com igual excelência todos os estilos de poesia; o importante do programa é a sua concepção audiovisual, ainda hoje mais inventiva do que a maior parte da nossa televisão actual. Da maneira como anda a televisão generalista, hoje o poema-telegrama poderia ser "JORGE/Podes vir./ A TV, enfim, morta."