Eduardo Cintra Torres

África Nossa


Eis-nos, enfim, de regresso à África colonial com nostalgia e sem problemas. A Jóia de África! Regressamos aos grandes espaços, às pacaças e rinocerontes, aos rios e tempestades, aos pôres-do-sol vermelhos que depois se dependurarão nas casas, a "estas cores todas, os sons, o cheiro da terra" - diz um personagem -, à machamba onde os pretos labutam contentes, à cantina e ao clube, à missão onde os negrinhos em volta da fogueira vivem felizes com o senhor padre.
Que bom voltar ao passado! Diz Joana, dos anos, no hospital em Lisboa: "Ao recordar-me de África era como se ressuscitasse." Não é isso que fazem os espectadores ao voltarem pela Jóia de África a Moçambique? Não ressuscitam eles depois de 30 anos de culpa psiquiátrica que os impedia de amar abertamente os tempos coloniais?
A Jóia de África (TVI) situa-se em "final dos anos 50". Não podia ser antes nem depois: antes seria demasiado longe de nós e sem uma colónia branca forte e implantada no terreno; depois seria a guerra colonial, a tornar impossível esta nostalgia impoliticamente correcta. Assim, nos anos 50, a série fica suspensa num tempo eterno, uma Idade do Ouro em que os brancos eram bons e os negros eram bons e todos tinham a ganhar com um colonialismo ameno de brancos temperadamente cafrealizados. Um colonialismo de que os brancos bons, quase todos, não têm culpa.
Nesta Idade, a realidade não se muda, os dois mundos convivem e as únicas eventuais contradições entre brancos e negros são resolúveis no âmbito do regime colonial e são as que a narrativa inclui: e pretos e brancos resolvem-nas eles mesmos com a ajuda do melhor de todos, Romão, o médico, super-herói que salva vidas mas precisará da ajuda sobrenatural da África negra, através da cega Nfuka, que "não é bruxa, D. Isabel, é curandeira".
Bruxa é ela, a D. Isabel, branca, inadaptada, a bruxa má das estórias. Ela e o filho, o Miguel. Os outros brancos são bons. Os pretos são bons, mas não têm força para enfrentar o mal. O maniqueísmo desta teleficção popular não é a preto e branco, apenas a branco: são maus os brancos que se entregam ao vício, não abraçam a terra que tomaram para engrandecer e impõem a sua superioridade racial à força e não naturalmente. Menos importante que a oposição binária branco/negro é a oposição Europa/África, estando os brancos bons do lado africano e os maus do lado europeu (diz a D. Isabel: "na minha juventude em Londres eu tinha as óperas e os teatros. Aqui é como se vivesse numa prisão").
O pano de fundo do argumento é, portanto, perfeito. A ideia original de Felícia Cabrita e a escrita de Manuel Arouca criaram uma narrativa que agarra desde o início. Estão lá todos: os fazendeiros inadaptados como D. Isabel (Teresa Madruga), ou adaptados, como o seu marido, Romão (António Capelo); o médico, o chefe do posto, o cantineiro "comic relief", o padre, a professora, o negro formado em Coimbra, a curandeira, o régulo; o mau Miguel racista, jogador, violador (Marco d'Almeida); e os protagonistas, o Príncipe Encantado Romão (Diogo Infante) e a Branca de Neve Joana (Sofia Alves, esplêndida no guarda-roupa dos anos 50). Cada personagem exerce a sua função, e cada função está cristalizada há milhares de anos nos contos populares.
Os bons amam África, os maus odeiam-na - estes sim, colonialistas e racistas, porque são más pessoas; mas os outros, a puríssima Joana e os pais que vieram de Trás-os-Montes e hoje... "quem diria quando cheguei a Moçambique que viria a ter plantações a perder de vista?", diz o Sr. Eliseu, "devo tudo a esta terra". Ó, que saudades desta Idade dourada do africanismo bom, aquele que fica bem na memória!
Nesse tempo-maravilha, no Vale do Zambeze, havia as "donas", mulatas agora já "quase brancas", filhas de idílios perfeitos de portugueses que fizeram mulatos, mães de gente boa: pois o próprio Romão poderá ser filho duma dona! A Jóia de África começa aí, precisamente, quando suspeitamos que o melhor de Portugal é este super-herói, talvez sangue dalgum fidalgo de ilustre casa, que se descobre mulato. E, como os autores leram Conrad ou viram Coppola, lá vai Romão com seu amigo Domingos, advogado negro, rio acima, como este diz: "em busca da tua verdadeira alma, subindo o Zambeze. (...) Se calhar as tuas origens são as minhas origens." E não é que desconfiamos que Romão desistirá de voltar à metrópole e lá ficará, comungando a alma com África, ao lado da princesa Joana, até ao fim da Idade do Ouro? E não é que desconfiamos que ele é meio-irmão de Miguel, o Caim? E não é que ansiamos pela grande cena do reconhecimento real, "Meu filho!», «Meu pai!"?
Esse Miguel, racista e violador, futuro meio-irmão de Romão, devia morrer. É por causa de gente como ele que a Idade do Ouro acabará e chegarão a FRELIMO e essa ideia doida de que éramos todos colonialistas - mas isso será depois, depois de acabar a Jóia de África. Porque na trama, a seguir, vem uma tempestade, metáfora perfeita no argumento provocando o naufrágio de Romão e seu afundamento com o seu objecto-colar na África profunda que o levará a Joana; tempestade que esconde a violação da filha do régulo pelo perverso Miguel; tempestade que adia o noivado de Miguel e Joana (ela: "será a tempestade um aviso para romper o meu noivado?").
Está lançada a trama - tão bem construída que as incongruências são detalhes: a verosimilhança está na acção, no espaço e no tempo e, por arrasto, na caracterização dos personagens. Que interessa se a bruxa má hipoteca propriedades sem o marido saber? As tolices funcionam como passes de mágica num conto popular: se sobe o gageiro ao mastro da Nau Catrineta e logo vê três meninas num laranjal como não aocnteceriam coisas semelhantes num mito audiovisual da Idade do Ouro do africanismo português?
Esta África é nossa, outra vez: o passado reconstrói-se mítico, e esta teleficção popular faz-se assim não para vender ideologia mas para se vender a muita audiência, em Portugal e no estrangeiro.
A Jóia de África é uma das séries populares mais bem feitas da TV portuguesa nestes anos convulsivos de concorrência e crise. Os tiques que ainda tem de telenovela, num género híbrido visando o máximo público, eram desnecessários. O facto de ser toda realizada em exteriores e em interiores naturais dá-lhe autenticidade e visualidade raras nos produtos nacionais, sempre claustrofóbicos em estúdios manhosos de paredes de cartão e iluminação miasmática.
Com argumento bem construído e diálogos fazendo sentido e recorrendo a um registo mais carregado de figuras de estilo orais e visuais do que a habitual platitude, a série está bem realizada e tem um bom elenco nos protagonistas e nos secundários. Nos primeiros quatro episódios, a trama, os diálogos e a capacidade dos actores puderam complexificar as pessoas, tornando-as seres humanos naturalmente contraditórios, mas sem ambiguidades profundas: no final tudo se resolverá com a vitória do Bem, a preto e branco - assim Deus e os espíritos da Nfuka os ajudem a chegar ao fim com a mesma qualidade.