Eduardo Cintra Torres

A Questão Pós-Moderna


Qual é coisa qual é ela que antes de ser já o era? É a televisão: antes de haver pós-modernismo já ela era pós-moderna. Para legitimar a adivinha preciso de citar quem associe a velha TV ao pós-modernismo. A bem dizer são duas citações, uma dentro da outra. Mas isso faz-se. Jérôme Bourdon diz: "A televisão sempre foi pós-moderna." E cita J.T.Calwell: "Qualquer exame sistemático da história da televisão mostra-nos rapidamente que os traços formais e narrativos que julgávamos características da pós-modernidade, a intertextualidade, o pastiche, as apresentações múltiplas e a colagem são propriedades presentes na televisão desde o seu início".

Ora este autor escreveu isto antes do caso Moderna, e escreveu muito bem. Eu acho que o caso Moderna-Portas tinha que acabar na televisão, porque isso significava acabar mesmo. Foi o que aconteceu. A imprensa alimenta casos. A TV come-os.

Portas não cometeu crimes, mas - ele mesmo como que admitiu - meteu a pata na poça; a oposição meteu-a na porta e não deixou o assunto morrer. O PS, tendo deixado de ter ideologia desde que mimetizou o PSD como partido de poder, pouco tem para dizer e então deixa ao Savonarola do Bloco de Esquerda a tarefa de lançar causas morais urgentíssimas.

Vai daí, parlamentarizou-se o caso Moderna ainda antes de o tribunal de Monsanto fechar os autos. Aqui a TV já entra um bocadinho, porque o parlamento está cheio de câmaras e os telejornais estão atentos. Mas, numa fuga para a frente, Portas envolveu ainda mais a TV: eis a proposta de um frente-a-frente com Ferro Rodrigues, que este recusou preferindo a coisa em episódios (foi à TVI no dia seguinte).

Ao levar a questão Moderna para o Jornal Nacional, Portas escolheu o terreno que lhe é mais favorável: a retórica e a emoção. Ele é o nosso melhor orador pós-moderno, o que sabe construir frases com sentido e com sabor TV; doseia muito bem a palavra com emoções à beira de um ataque de nervos, o que também emociona o espectador. O Dr. Freud, que estudou burguesas deitadas numa marquesa (e não, como alunos das nossas modernas escolas poderiam pensar, marquesas deitadas numa burguesa), escreveu uma coisa tão importante que parece bíblica: "Aquele que tem olhos para ver e ouvidos para ouvir que se convença a si mesmo que nenhum mortal consegue guardar um segredo. Podem os seus lábios permanecer fechados, ele falará com a ponta dos dedos; ele transpira traição por cada um dos seus poros."

Também o Dr. Freud escreveu isto antes do Dr. Portas ir ao Jornal Nacional, o que mostra a sua perspicácia. Portas falou imenso, pela boca e pelos poros. E disse - a bem dizer foi isto que disse pelos poros - isto assim: aquilo da Amostra foi uma tolice, uma infantilidade e aqueles artigos do Independente foram outra; perdoem-me, sou honesto, e deixem-me continuar no governo que eu a partir de agora porto-me bem. E os espectadores puderam ver isso, e desculparam-no. A televisão é maravilhosa. Podemos nem estar a ouvir as palavras de uma pessoa, mas vemos, e intimamente entendemos para além das palavras, porque vemos e ouvimos centenas de sinais que lhe saem do corpo. Nisto, a televisão é muito burguesa de Viena deitada na marquesa. A TV permite a todo o espectador, menos analfabeto, "fazer hermenêutica", o que não deixa de ser uma mais-valia para uma literacia audiovisual destes novos tempos e motiva despeitos num ou noutro elitista mais avesso à comunicação contemporânea.

Ao levar o seu caso para a TV, Portas trazia a TV até à sua porta, se me permitem o lugar-comum. E ela lá foi, para aquela sala gelada de S. Julião da Barra, com uma lareira que nunca se acende a fazer de fundo do écrã. Eu quase não ouvi o que Portas disse naquele cenário ministerial, só olhava para a lareira e pensava «mas onde é isto?, um cenário novo?» Gostei da cena por causa de o cenário ser novo. E também gostei da cena dialogada: a jornalista da SIC, Anabela Neves, representou bem o papel de quem pergunta porque perguntar não ofende; e o ministro que não estava no salão ministerial como ministro ofendeu-se com as perguntas porque, às vezes, responder ofende. Os Drs Pires de Lima sabem isso muito bem. E Portas saiu do confessionário antes de tempo, ofendido com as perguntas inofensivas, e saiu daquela casa. Não voltaria a confessar-se.

Depois, foi a "manif" de domingo no Largo do Caldas, que fechou o triângulo televisionável que a linha Queluz de Baixo/S. Julião da Barra convidava a traçar-se. A "manif" é TV em estado puro. A hora marcada, sete da tarde, foi como as datas antes de Cristo, isto é, antes dos telejornais. Oito em ponto e Portas nos écrãs. Esta "manif" é mais uma forma de acção política em que não há perguntas, apenas fala quem manda. A rua está lá para fazer cenário. E, para Portas, mais vale um magote de gente bem formada que uma lareira gelada em S. Julião da Barra. No comício Portas falou o que quis, sem ter de responder a Pedro Pinto ou Anabela Neves. E terminou dizendo "Só Portugal! Só Portugal! Só Portugal!", o que me deixou mais gelado que a lareira, porque não é coisa que se diga. É o mesmo que nos mandar calar.

Aquele domingo à noite foi realmente interactivo: os canais citavam-se uns aos outros e mesmo as pessoas saltitavam de estúdio. Santana & Sócrates comentaram o comício e o caso na RTP1; Rebelo de Sousa na TVI; Santana partiu em excesso de velocidade na A5 para chegar a tempo ao estúdio de Paço de Arcos onde se faz o Herman SIC e ali misturou política com Artur Garcia e Herman e Simone de Oliveira e Eunice Muñoz, numa cena dessa nova maneira de fazer política que mistura géneros e as coisas todas. No "talk-show", Santana defendeu Portas e defendeu Cinha que defende Portas que Herman defende e agora já estou a falar também do Big Brother onde está Cinha que Herman cita e que ameaça fazer, também ela, política.

E era a isto tudo que Pacheco Pereira se referia no seu interessante artigo de quinta-feira, o qual, todavia, precisava um bocadinho de tradução. Era isto: o populismo está na política e ao que parece compensa. O artigo fazia pensar no triângulo Santana-Cinha-Portas consumado no Herman SIC como exemplo desta condição pós-moderna em que as vinhetas se misturam, como estas confissões de Portas no Jornal Nacional, de Cinha no Big Brother, de Santana no Herman SIC e de Vítor Baía pedindo "perdão" a José Mourinho pelos media.

Portas caiu na mesma tentação que Clinton ao trazer o assunto para a TV. Mas porventura sabiam ambos que os media se cansam depressa. Passado o momento difícil, feito o monólogo do comício e o debate na SIC Notícias de terça-feira (que não vi), o caso Moderna pela vertente Portas está como que tele-encerrado. Portas sai abalado, mas continua. Com o debate, coisa estranha, a televisão fechou o círculo no lugar da polémica, a própria Universidade Moderna, a qual, segundo o senhor reitor ali em tempo de antena na TV, está já literalmente numa fase pós-Moderna.