Eduardo Cintra Torres

As Tias Também São Humanas


Os concorrentes do Big Brother IV são "famosos" por via da própria televisão: se Cadete se celebrizou no futebol, quatro concorrentes "trabalham" na música comercial próxima da TV e os restantes são personagens exclusivamente televisivos.

A questão de eles não serem "famosos" para muitos espectadores no momento em que entraram na "casa" é irrelevante: as regras da sociedade do espectáculo em que vivemos apontam para a autoridade do emissor, a TVI, em nomear como "famosas" pessoas de que a esmagadora maioria dos portugueses nunca ouviu falar. A TVI, ou a Endemol, ou ambas, escolheram 13 personagens que lhes dessem à partida expectativas de garantirem um máximo de audiência.

Pelo espectáculo é que vamos. Quem acompanha o programa sabe que o Big Brother Famosos é, como os anteriores, uma construção ficcional a partir de elementos de realidade, mas gosta; diverte-se, participa no jogo (falando sobre ele, optando por um jogador, "votando") e aprende alguma coisa sobre comportamentos sociais e outros. São pequenas lições que se enquadram mais na forma social da cusquice: como são os "famosos" no engate? Que frases dizem às raparigas? Como reagem elas? Será que elas também se "atiram"? Serão os "famosos" iguais a nós?

Os espectadores sabem que estes "concorrentes" são pagos para representar, não um personagem "exterior" a si, como no teatro ou no cinema, mas um personagem criado a partir deles mesmos para a interacção social e espectacular.

Para corresponder às expectativas da TVI, cada concorrente tem de criar interesse no maior número de espectadores. Quer dizer, tem de criar uma narrativa. A realização tem de corresponder a essa pluralidade: precisa de muitas câmaras de forma a permitir a cada espectador tornar-se aficionado de um dos concorrentes. Ao contrário do tipo mais frequente de narrativas, aqui são necessários 13 pontos de vista. O Big Brother são 13 personagens à procura dum argumento. Tal como num jogo de cartas, os que vão perdendo saem devido não só à sua própria prestação como a uma complexa interacção de elementos (com os restantes concorrentes, com a produção e a realização, com o público, com os "media" que cobrem o espectáculo). A narrativa geral do Big Brother tem inúmeras regras impostas pelos condicionalismos do lugar e da indústria televisiva, mas tem o elemento de improviso sem o qual não haveria expectativa.

Os concorrentes percebem isso: estabelecem uma teia de relações dentro da "casa", criam expectativas em relação a eventuais ligações sexuais ou amorosas. A possibilidade de concretizar-se uma união sexual dentro dos limites da narrativa - isto é, dentro da "casa", antes de terminar o jogo - levará os espectadores interactivos a manter os eventuais parceiros dentro da "casa", "votando" neles. Por exemplo, seria descabido os espectadores "expulsarem" Cadete ou Nicole quando ele criou uma expectativa em relação a ela; idem para Daniela e Ricky.

Para a concorrente Cinha Jardim, porém, a hipótese de relacionamento sexual está fora de questão pelo seu "estatuto" fora da "casa". Daí que ela tenha recorrido a uma estratégia diferente para se manter em jogo. Essa estratégia passa, em primeiro lugar, por assumir que está ali para mostrar que, no quotidiano, um "famoso" não é diferente do anónimo. É, também, irrelevante para o espectáculo que tal seja ou não verdadeiro. O que conta para o espectador anónimo é que Jardim passe a ferro, costure e lave o chão.

Em segundo lugar, Jardim substituiu a expectativa do encontro amoroso pela expectativa da revelação: ela vai dando pistas ou mesmo revelando "segredos" de outros "famosos" que conhece (Vale e Azevedo, Vilarinho, Santana Lopes), num jogo perigoso de público-privado. É possível que chegue a fazer revelações se a sua permanência ficar ameaçada; ou poderá limitar-se ao estilo habitual dos "cronistas sociais", tipo Carlos Castro, que a todo o momento ameaçam revelar assuntos da vida privada de "famosos" para logo dizerem cala-te boca.

Finalmente, em terceiro lugar, e como acessório, faz parte da estratégia de Cinha Jardim a criação da expectativa de poder sair a qualquer momento - com o objectivo de ficar.

A referência a esta concorrente é importante porque ela foi destacada nas primeiras semanas. E digo que foi destacada (e não que se destacou) porque em redor dela se criou um tratamento especial quer dentro quer fora da "casa".

A generalidade dos concorrentes e, cá fora, a imprensa e a grande sacerdotiza do ritual, Teresa Guilherme, assumiram a dualidade: há 12 concorrentes que pertencem a um grupo, a uma classe, e, à parte, há Cinha Jardim, a "tia", membro dum grupo que ilude a sua natureza, o grupo dos que se comportam publicamente como ricos mesmo sem o serem, partilhando lugares (stones e gigis), e protagonismos cor-de-rosa.

Este Big Brother é a consagração popular da tia como estatuto de pessoas duma "classe superior", uma espécie de aristocracia dos "conhecidos". Como disse, exultante, uma outra tia em entrevista ao Jornal Nacional, Cinha Jardim mostra ao povo que as tias também são seres humanos. Ela estaria ali, portanto, em missão - missão de classe. O Big Brother Famosos permitiu esta democratização das tias, a sua aceitação pela massa anónima, a sua integração na nação. Eis de novo a TV facilitando a dissuasão de oposições sociais e a aproximação entre grupos que se desconhecem e receiam. O poder político devia agradecer.

A aceitação social das tias não significa qualquer alteração no seu estatuto. A forma respeitosa como é ali tratada Jardim lembra o Portugal antigo. Só que noutros tempos era o povo que tinha de se fazer aceitar pela "alta". Agora, na ditadura do proletariado mediático, é o inverso, a tia tem de ir para a "casa" dos "famosos" do povo para que este aceite a "alta". Cinha Jardim fez o suposto "sacrifício" de ganhar um "cachet" para continuar a fazer dentro dum estúdio televisivo em forma de casa o mesmo que faz há anos: exibir publicamente a sua vida privada.

A principal distinção entre o Big Brother Famosos e as edições anteriores reside na natureza do rito de passagem que se pratica e apresenta. Antes, os concorrentes prestavam-se a tudo para conseguirem passar do estado de anonimato ao de conhecidos, com as vantagens sociais e materiais inerentes a esse novo estado. Os actuais concorrentes fazem o percurso contrário: neste ritual têm de mostrar que, sendo conhecidos, são capazes de ter comportamentos e empreender actos quotidianos das pessoas anónimas. Só pode ser "famoso", diz o programa entrelinhas, quem se mantiver humilde como o espectador.

A presença dos concorrentes Sónia e Zé Maria representa a consagração deste modelo: o Big Brother I arrancou-os ao anonimato e tornou-os "famosos" ao ponto de agora, já como "famosos", participarem numa edição do Big Brother que os devolve na aparência ao ser-se anónimo.