Eduardo
Cintra Torres
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Pormenores ao Pormenor |
«Tudo aconteceu...» É raríssimo o noticiário televisivo em que esta frase não surge. Por vezes repete-se em várias notícias do mesmo telejornal. Há outras expressões semelhantes que marcam igualmente presença: «tudo indica», «tudo começou». As frases «tudo aconteceu» ou «tudo começou» servem ao jornalista para estruturar a narrativa. Eles usam a expressão em primeiro lugar para eles mesmos: têm de escrever uma estória e sabem que não podem começar por «era uma vez», que quer dizer exactamente o mesmo mas identifica narrativas de ficção. Com o «tudo começou» ou «aconteceu» indicam que a estória começa ali. A diferença do «era uma vez» para o «tudo aconteceu» é que nesta muleta discursiva do telejornalismo a semântica não corresponde à realidade significada: nem tudo aconteceu, nem tudo começou quando é indicado. Raramente a narrativa jornalística tem a sorte de se deparar com um facto de que pode realmente contar tudo o que de importante aconteceu. A frase «tudo indica que» é um pouco pior ainda, pois denota que a narrativa se constrói sobre indícios não comprovados e que os toma não só como verdadeiros mas também como os únicos existentes. De facto, é falso nas notícias que usam essa expressão que «tudo» indique o que quer que seja (quanto mais tudo!). O uso da palavra «tudo» (bem como o «nada», também muito frequente na escrita televisiva para o mesmo efeito), além de não ser rigoroso e de ser muitas vezes abusivo, dá ao texto uma «certeza» que o jornalista não pode ter e não deve transmitir ao ouvinte: se, no caso dum crime, o jornalista afirma que «tudo aconteceu» como ele narra, para que servem os tribunais? Basta perguntar ao autor da notícia. As palavras «tudo» e «nada» são muito úteis ao jornalismo televisivo por causa da sua dupla condição: por um lado são pronomes indefinidos que se aplicam à 3ª pessoa gramatical, quando considerada de um modo vago e indeterminado. Que pode haver de mais vago e indeterminado do que este «tudo»? Mas, ao mesmo tempo, o «tudo» tem a força da quantidade, da totalidade. O «tudo» ou o «nada» são palavras fortíssimas e muito úteis ao jornalismo sem rigor porque, ao chegar-se ao fim da narrativa, já o ouvinte não volta atrás para verificar se o «tudo» era realmente tudo ou o «nada» era realmente nada. Estas muletas deveriam ser evitadas em notícias que exijam grande rigor factual e de vocabulário. A falta de atenção ao detalhe no ensino do jornalismo prático e a ausência de cursos de reciclagem nas redacções televisivas motivam uma escrita cada vez menos rigorosa. Também já se tem ouvido notícias com frases do género «há quem diga que», o que aponta para o mesmo facilitismo não só na procura dos factos como na sua transmissão aos espectadores. A credibilidade deste tipo de jornalismo televisivo diminui se, à sua falta de rigor nas palavras, acrescentarmos a incapacidade das imagens em construir narrativas. * * * A grande novidade do jornalismo televisivo da última década tem... milhares de anos. É a palavra escrita mostrada, que se acrescentou às imagens em movimento e ao discurso sonoro. O ecrã encheu-se de escrita. Das mais pequeninas informações bolsistas aos títulos garrafais das notícias do Telejornal da RTP1 (que apresenta um ecrã dentro do ecrã), a gama de informação por palavras ocupa uma parte importante da superfície dos noticiários, reduzindo o «espaço» dos apresentadores e das imagens em alguns casos a menos de metade da totalidade do ecrã, como o da MSNBC, por exemplo. Com a múltipla utilização da escrita, a informação televisiva consegue: dar mais informação; dar várias informações em simultâneo; dar ao ecrã um novo tipo de utilização, dado que a escrita é a única comunicação completa que o televisor pode transmitir se estiver sem som. As informações escritas são, portanto, úteis e, se o estilo é excessivo, o ecrã fica de facto «enriquecido». Além disso, garantem ao meio televisivo uma personalidade ímpar entre os "media". De todas as utilizações da escrita no ecrã uma há que poderá ser apenas uma moda: a da cobra que corre em baixo com as palavras - também elas - em movimento. Essa faixa dá um sentido de urgência à mensagem que só em casos extremos é correspondido pelo conteúdo da informação que transmite. Torna-se assim muito irritante. Ainda por cima, desvia demasiado a atenção do espectador da narrativa principal do noticiário, fazendo do apresentador um fantoche. Quando a notícia que corre na faixa inferior interessa tanto ao espectador como a notícia que o apresentador lê, a sua coexistência obriga o espectador a optar entre o que ouve e o que lê quando o não quer fazer. Isso é insuportável. Daí que seja desejável que esta faixa noticiosa se assemelhe a muitas outras invenções técnicas: sendo realmente uma coisa «muita gira», espera-se que desapareça rapidamente da face do ecrã. A entrada retumbante da palavra escrita no ecrã teve uma consequência inesperada: revelou ao país que há muitos jornalistas que trabalham na televisão a escrever mal, não só na construção gramatical como na própria ortografia. Os erros gramaticais e ortográficos que a toda a hora lemos nos telejornais são de bradar aos céus e uma vergonha para o jornalismo português. Esses erros verificam-se em todos os canais, mas são particularmente frequentes na SIC, o que impressiona mais por ser este o canal onde é mais rigorosa a construção narrativa das notícias e o uso do vocabulário. A este tipo de erros há que juntar os que vêem dos próprios espectadores. Os programas de entretenimento também têm esta barra ambulante de texto, reproduzindo partes de mensagens por eles enviadas por "e-mail" ou SMS, meios em que muita gente utiliza uma linguagem própria e uma ortografia especial. A transposição para o ecrã dessas mensagens sem correcção é negativa, pois nem essa linguagem coincide com a do meio televisivo nem é acertado que um meio de comunicação utilize sistematicamente uma ortografia não normalizada. Isto para já não falar do descontrole editorial das mensagens que os espectadores enviam: há tempos no Bom Dia Portugal correu uma mensagem em que um espectador dizia que gostava muito, para determinados fins, do traseiro da pessoa a quem supostamente enviava o texto. Por via hertziana, por cabo e via satélite, o mundo inteiro lusófono ficou a saber. Afinal, a nossa pátria sempre é a língua portuguesa. |