Eduardo Cintra Torres

Malucos do Riso, Muito a Sério


Se os Malucos do Riso fossem um livro, haveria críticos literários recusando-se a pronunciar-lhe o nome, quanto mais a escrever sobre ele. Seria para eles o mesmo que abordar criticamente um livro de Paulo Coelho ou de Margarida Rebelo Pinto: como não são literatura, o crítico "rebaixa-se" se escrever sobre livros que muitos milhares de concidadãos lêem, pessoas que não só ganhariam em ler a crítica como de alguma forma têm direito a ela. Muitos críticos literários raramente se debruçam no seu próprio tempo sobre os êxitos populares do seu próprio tempo: deixam a tarefa para as gerações futuras.
Da crítica de TV espera-se, paradoxalmente, o contrário: mesmo os críticos literários aceitam que ela comente programas de grande audiência. Em rigor, deveriam espelhar o despeito pela crítica de objectos destinados a uma ampla audiência e aconselhar os críticos de TV a escrever só sobre programas que almejam o estatuto de objectos artísticos. Mas não. A ideia feita diz que o "comentador" de TV pode escrever sobre programas de massas enquanto o verdadeiro crítico, saltitando de nuvem em nuvem na companhia das obras do canon literário, ignora tudo o que não chegue ao seu olimpo.
Sinto-me, pois, autorizado pelos detentores do canon parar escrever sobre o maior êxito de audiências da TV portuguesa: os Malucos do Riso consegue a proeza de atrair sempre cerca de um milhão de portugueses; se o programa é repetido quatro e cinco e talvez mais vezes, a audiência cresce. Dias a fio há mais gente a ver estes Malucos do que telejornais, novelas, concursos, tal-shows ou filmes.
Os Malucos do Riso é uma colagem de anedotas contadas pelas próprias proto-personagens dessas micronarrativas. Um programa de Malucos do Riso divide-se em episódios independentes, sem intriga, numa composição aberta que se repete nos programas seguintes. A estrutura mosaico de cada programa permite-lhe não ter fim e, portanto, a própria série não tem desfecho. Numa sessão de anedotas, qualquer desenlace é arbitrário, não depende duma intriga de conjunto. O final dum programa dos Malucos é, como aí, definido pela unidade temporal e nada mais: e, mesmo assim, a SIC pode cortar um programa a qualquer momento se lhe der jeito.
Apesar de não haver desenvolvimento qualquer psicológico das personagens, as figuras-tipo repetem-se diariamente e criam a habituação necessária à empatia: a repetição favorece o riso. Os episódios são sempre da mesma maneira, muito simples, nos mesmos cenários, em planos idênticos -- e sem movimento, porque para a função de contar a anedota não é preciso movimento. Note-se que se trata de anedotas em primeiro lugar orais e quase nada visuais: todas ou quase se podem contar no dia seguinte ao almoço. A imagem é, no caso dos Malucos do riso, um adereço.
Cada episódio (sketch) tem uma duração curta, por vezes curtíssima, o tempo da anedota. Se lhe acrescentam umas buchas, o episódio perde a única coisa que se lhe pede, a narrativazinha da anedota. O texto escrito nada de substantivo adianta às anedotas do quotidiano, não as "complica"; apenas compete aos actores dar verosimilhança ao texto, o que uns conseguem e outros não -- mas neste último caso o espectador aceita como aceita ouvir uma anedota contada por quem não tem jeito: o que interessa é que a narrativa chegue ao desenlace.
Na anedota o essencial é o fim. Nos Malucos, o desfecho é acentuado por caretas que os actores nos dirigem quando o que tem a seu cargo a piada acaba de a pronunciar. Essa careta é antiquíssima nos palcos de comédia e em séries televisivas de humor ("sitcoms" como Lucy Show, programas de anedotas como o Planeta dos Homens). Ela serve para dizer: a anedota acabou, eu percebi-a, vocês podem-se rir.
Só no caso da figura do merceeiro criado por Camacho Costa se está para além da anedota. O actor criou um verdadeiro personagem de comédia, pelo que todo o episódio ganha colorido e o desenlace da estória pode até ser irrelevante. Isso não sucede nos outros casos, pois no caso de a anedota não funcionar o episódio não serve para nada.
Não é importante "comentar" se as anedotas dos Malucos têm piada. Como tudo na vida, as anedotas estão em relação com o receptor. Se há situações cómicas universais (toda a gente ri), outras agradam mais a homens que mulheres, a jovens que a velhos, a nortenhos que a alentejanos, a pobres do que a ricos, etc. Havendo um pacote de anedotas, alguma ou algumas hão-de fazer rir um qualquer espectador. Juntando-se todos esses quaisquer espectadores, chega-se a um milhão.
Mas vale a pena verificar os protótipos a que a série recorre, porque formam um mundo real, ou já mediatizado, que a maioria dos portugueses conhece: há um episódio de louras burras; um episódio de médico, que representa a autoridade; um episódio de merceeiro de bairro, que procura vender toda a porcaria que tem; outro de restaurante de bairro; há um episódio em que os personagens tentam enganar a autoridade policial; um episódio num transporte público; um episódio com soldados por oposição ao sargento; um episódio com prisioneiros de delito comum; há episódios relativos a cornudos e à raridade de relações sexuais nos casamentos estáveis; há um episódio de alentejanos.
As anedotas são apresentadas do ponto de vista dos personagens mais fracos, e não da posição de autoridade. Por exemplo, a nossa simpatia é dirigida para os presos, bons rapazes, que cometeram o crime, sabem que têm de o pagar à sociedade, e agora querem é beber uma pinga e passar o tempo o melhor possível atrás das grades; ou é dirigida para os soldados, que não são mais estúpidos que o sargento; ou é dirigida para os que tentam enganar o polícia (e mesmo que não consigam merecem a nossa simpatia).
Assim, os episódios do programa, todos independentes entre si, formam afinal uma unidade ideológica. A ideologia destes Malucos não subverte a ordem social, o que é fácil numa série de humor; mas representa um modo bem português de viver em sociedade: procurar sempre enganar a autoridade, o poder, sem o pôr em causa. O guarda da prisão descobre o garrafão escondido, mas é ele "a vítima" da anedota; o polícia não se deixa enganar pelo condutor descuidado e alcoolizado, mas é ele "a vítima da anedota"; para conseguir uma venda em tempos difíceis, o merceeiro não consegue enganar o cliente, mas quem tem graça é ele.
É a ideologia do desenrasca, do individualista nem-sim-nem-não que procura chegar aos seus fins pisando o risco sem fazer muita força com o pé, para não magoar nem o outro nem a si mesmo -- para não se pôr numa situação da qual não possa voltar atrás.
Há, portanto, uma paisagem social que emerge destes quadros, a paisagem social dum Portugal persistente, quem sabe se ainda maioritário, longe dos lugares do poder, que quase não tem lugar noutras ficções televisivas e que, nos telejornais, apenas se revê em notícias tristes ou terríveis. Aqui, nos Malucos do Riso, esse Portugal vê-se ao espelho e ri-se.