Eduardo Cintra Torres

Os Telecomícios da Rentrée


O discurso de rentrée de Ferro Rodrigues durou 44 minutos, o de Paulo Portas 42 minutos e o de Durão Barroso 41 minutos. Todos em directo na TV. Comentadores consideraram a duração dos discursos como um anacronismo formal (Bettencourt Resendes sugeriu 20 minutos "televisivos"), bem como a forma comício (António José Teixeira sugeriu universidades de verão).

A referência temporal foi feita em especial ao discurso de Ferro, por ter sido o menos mediático, mas a duração é uma questão lateral dos discursos, da mesma forma que o é se aplicada aos próprios comentadores (que na SIC Notícias usaram entre 25 e 32 por cento do tempo dos discursos para os comentar).

Para marcar a agenda do novo ano político 40 minutos não é muito. É "tempo a mais", isso sim, para o tempo e a encenação televisivos, se os discursos não forem de boa e moderna retórica mediática e se o comício não for bem mediatizado.

Os comícios afirmaram-se na Europa como forma das facções políticas apresentarem dirigentes e ideias-chave mas em especial, com as classes trabalhadoras nas ruas ("classes labourieuses, classes dangereuses"), para medir forças.

O regime burguês do século XIX considerou que a liberdade de imprensa permite a expressão das ideias e a democracia a escolha livre dos representantes do povo, pelo que a utilização emotiva da rua e da força do número como forma de acção política contrariava a liberdade e a essência da democracia. Com base nesta formulação teórica aqui simplificada, legislou num sentido em que a "opinião pública" se exprimia em eleições e na imprensa, isto é, em acções individuais e até dentro do lar, na esfera privada, e não nas ruas e praças. Isto é, o "espaço público" deixava literalmente de ser coisificado no espaço físico público.

O comício passou a ser em geral uma forma de a oposição manifestar o poder do seu número; para os partidos de poder avessos à rua, o comício regrediu para o ritual pré-eleitoral. Em Portugal, onde a ausência de liberdades atrasou décadas a evolução das formas de acção política, o pós-25 de Abril usou sabiamente as "manifs" e os comícios como formas de oposição e demonstração da força numérica. Mas a tendência tem sido a mesma dos outros países, concentrando-se os comícios nas campanhas eleitorais. A nossa originalidade são estes comícios de "rentrée".

Segui os três comícios na SIC Notícias. As semelhanças entre os três comícios foram as seguintes:

- Principal semelhança: presença da televisão.

- Os três partidos escolheram espaços urbanos privilegiados (praças centrais, com cafés) de localidades de "província", isto é, não identificadas com a política profissional, "viciada", etc, e no Centro e Norte do país, onde se "trabalha mais".

- A mobilização foi escassa, em especial no partido da oposição, e não é muito empenhada; pairava no ar um ar parado de férias e de frete.

- Para encher praças e ecrãs, os manifestantes são mobilizados em diversos locais (o PS tinha em Resende uma bandeirola de Penafiel; em Aveiro, o PP tinha-as de Montalegre e Mirandela; e na Póvoa, o PSD tinha-as de Ponte de Lima, Trofa, Oliveira de Azeméis, Lousada, Baião, Valongo e Vila do Conde).

- A principal preparação cénica é a do palco, com a frase de "rentrée" e o púlpito donde ora o líder.

- Tal como nos "talk-shows" televisivos, dá-se atenção, embora desigual, à animação das massas e à música como formas de criar uníssono nas multidões. Esta emocionalidade precisa de ser provocada, pois as razões do comício são insuficientes para emocionar os presentes. Todavia, a emocionalidade nos comícios, mesmo que de plástico, é precisa para mostrar no ecrã.

- Distribuição de adereços aos militantes, como bonés "Ferro Rodrigues", "t-shirts", bandeiras partidárias, nacionais ou de slogans (bandeiras "Durão Barroso") e bandeirolas de localidades. As bandeiras enchem écrãs.

- Todos os partidos deram a conhecer antecipadamente aos jornalistas o que consideravam ser os principais tópicos dos discursos, pelo que a entrada em palco dos líderes já se fez enquadrada por esse auto-agendamento nas intervenções prévias das jornalistas Anabela Mendes (PS) e Raquel Alexandre (PP e PSD).

As principais diferenças entre os três comícios foram as seguintes:

- Ao contrário do PS, que fez o comício à tarde, o PP e o PSD sabem que a noite favorece o espectáculo e ilude, caso necessário, a verdadeira dimensão da multidão presente. O PS não cuidou de, ou não conseguiu, reuni-la. Nos outros dois comícios, a noite, a iluminação do palco e a profusão de bandeiras seriam suficientes para evitar o fracasso mediático.

- O PS não prestou atenção ao local exacto do comício, expondo Ferro ao sol forte da tarde, péssimo para a luz TV e causador duma mancha invasora de suor na camisa, sendo o suor um bom símbolo nas artes fílmicas para outras actividades (o trabalho e o sexo) e péssimo para a política (ansiedade).

- O PS também abdicou doutros meio favoráveis à imagem, como os écrãs gigantes. - A roupa dos líderes estava de acordo com a circunstância e a posição institucional: Ferro, da oposição, em camisa; Portas, júnior do Governo, de calça clara, blazer azul e camisa aberta; Durão, chefe de Governo, idem, mas de gravata. Em resumo, os três comícios foram feitos para a TV. A forma comício serve para espectacularizar, para evitar espaços partidários de debate interno e formulações teóricas, substituídas aqui por tópicos de agendamento e "sound bites". Todos os líderes estavam a falar para o país (Durão disse-o) ou para o partido em primeiro lugar (Ferro) via TV e menos para os presentes. A construção do espaço, a escolha da hora e a animação e guarda-roupa da assistência organizada estavam feitas para a TV, sem competência técnica no caso do PS e com apuro especial no caso do PSD (a bancada sentada acentuava o lado tele-espectacular do comício; o posicionamento do líder num palco-seta já dentro/acima da multidão acentuava o enquadramento e criava um índice de carisma). A construção do espaço e da "multidão" corresponde às encenações dos estúdios de TV e de "'talk-shows' sem diálogo", se tal género existisse. Estes são comícios do poder. O que os ecrãs mostram são encontros de notáveis e de quase-profissionais da manifestação, em geral militantes políticos ou sindicais. Quanto mais próximos do poder mais eficazes, porque o espectáculo celebra poder, não protesto ou oposição. Daí que o discurso de Ferro, a quem fazem falta aulas de retórica e oratória, surgisse patético: aquela deveria ser uma afirmação de poder (qualquer poder), e ele apenas lamentou que o poder lhe tivesse fugido. Em geral, a forma adoptada e o conteúdo (mensagem unilateral do líder) favorecem os partidos e a televisão, representando pois um processo de actualização e adaptação duma forma anacrónica da expressão política. O facto de tudo poder correr mal, como a Ferro em Resende, é um risco que os líderes partidários portugueses estão dispostos a correr porque preferem os telecomícios a outras formas de acção política contemporânea.