Eduardo Cintra Torres

O Estilo Excessivo


O écrã pleno: a superfície do écrã tornou-se um traço distintivo da TV. Nenhum outro meio dá tanta "informação" ao mesmo tempo. Só a visão o permite, com a ajuda da audição. A rádio dá uma coisa de cada vez (às vezes com música ou ruído em fundo como segunda camada de informação). A TV, que era quase só radiofónica, fez do écrã uma "página de jornal".

O écrã noticioso pode ter: apresentação/imagem da notícia em curso; logotipo da estação; oráculo simbolizando a notícia em curso ou (caso da TVI) anunciando as próximas; rodapé resumindo a notícia em texto escrito; rodapé rolante com outras notícias, algumas exteriores à narrativa do telejornal (os canais económicos passam a roleta bolsista); e ainda: um relógio; informações quotidianas (temperaturas; principais acções em bolsa).

Esta exuberância desenvolveu-se nos anos 80 nos EUA, quando as grandes cadeias sofreram a primeira crise em décadas; em Portugal, afirmou-se em 2000, quando as três operadoras entraram em crise. A exuberância serve o instinto de sobrevivência, captando atenção, mantendo espectadores (os rodapés permitem um zapping dentro do mesmo canal). Um autor, John Thornton Caldwell, inclui o fenómeno no "estilo excessivo" ou "televisualidade", marcado entre outras características, por "camadas múltiplas e simultâneas de informação perceptual e discursiva, muitas vezes esmagando-o pela combinação de sinais visuais, espaciais, gestuais e icónicos."

Se faz perder uma atraente austeridade formal e de conteúdo, o estilo excessivo veio mostrar que a TV pode carregar muita informação "em simultâneo". Na factura, porém, temos de pagar clamorosos erros de ortografia e gramática dos oráculos, informação desconcertante, autopromoções, desvios de atenção, etc.

A Última Ceia:

"De São Francisco a Los Angeles tive a ventura de visitar sete reproduções em cera da Última Ceia de Leonardo", escrevia Umberto Eco já vai para 20 anos. A cera "é mais real e tem mais" do que o fresco original, dizia-se num duns lugares que Eco visitou.

Podia ter sido em Las Vegas, que é capital do estilo excessivo, como L.A. - mas mais orgulhosa de o ser, mais consciente e honesta (!) porque o estilo excessivo é para o "espectador" da cidade um fim em si, não serve para mais nada. O arquitecto Robert Venturi escreveu que ao invés das outras cidades, que comunicam para poder funcionar, Las Vegas funciona para poder comunicar - estilo excessivo, acrescento eu. Em Sete Palmos de Terra (RTP2, 20.08) Nate e Dave participam em Las Vegas numa reunião dos cangalheiros dos EUA. Todos se entregam aos excessos que a cidade oferece - e, exposta numa sala do hotel onde se realiza a convenção, lá estava, ela, a Última Ceia de Leonardo, decorando um luxuoso caixão, mais real e com mais cor e desenho que Da Vinci.

O guardador de audiências:

primeiro acto: a reportagem de Ana Leal cria o personagem pequeno Daniel, seis anos, guardador de vacas que nunca viu o mar e a cidade. Segundo acto: O apocalipse bom desce de helicóptero em Pitões das Júnias. A bordo seguem as câmaras e Mantorras do Benfica. Do helicóptero TVI, Daniel vê o mar e a cidade. Terceiro acto: o apocalipse bom inverte-se, agora o Daniel vem à cidade assistir ao Benfica-Real Madrid num estádio escavacado, tal como no filme de Coppola os soldados chegam ao estádio no meio da selva. O jogo de futebol, guardador do fluxo televisivo, serviu para a TVI mostrar também o pequeno personagem em campo e fora de campo e para promover todos os programas da rentrée. Sem dizer, porém, que o Daniel é um trunfo em pré-rentrée. Ele é um guardador de audiências. As crianças dão audiências porque as audiências são hoje, em primeiro lugar, feitas pelas escolhas das crianças. Seria bom que a TVI parasse de explorar o Daniel, ficando-se por este terceiro acto, feliz. Só aos deuses cabe, se couber, interferir no destino. O estilo excessivo não é deus.

A tragédia de Jessica e Holly:

o mundo é cruel. Todos os dias há crianças raptadas, violadas, agredidas, assassinadas. O silêncio da rotação quotidiana do mundo abafa o grito da aritmética medonha das suas tragédias sem fim. Nem sempre o mundo se cala, porém - e escolhe uma ou outra tragédia para viver colectivamente.

O que destacou o horror de Jessica e Holly do seio desse mar de tantas tragédias que ficam por contar? O que distinguiu foi que a tragédia das duas meninas inglesas se pôde organizar enquanto tragédia televisiva.

Primeiro, as vítimas eram crianças, e meninas, os mais inocentes dos seres humanos.

Segundo, o rapto criou a expectativa (o suspense, esse tão audiovisual tempo contra o tempo) ou de final feliz ou, mais previsivelmente, de tragédia. Porquê mais previsivelmente? Porque, conforme referia Francisco Moita Flores à Rádio Renascença (Edição da Noite, 20.08), quando os raptados conhecem os raptores o assassínio é quase certo - é o destino. Intimamente, todos sabemos isso, todos pressentimos a tragédia.

Terceiro, os factos incluíam elementos de improbabilidade e de imprevisibilidade. O palco da tragédia era improvável: uma pacata aldeia onde "nada acontece"; os principais suspeitos trabalhavam na escola (eram um cavalo de Tróia do mal no seio da casa do bem) e surgiram repetidamente nos media antes de os sabermos culpados, como numa narrativa policial. O que se espera numa tragédia é que ela aconteça precisamente da ruptura inesperada do provável e do previsível. Também por isso a tragédia é notícia.

Quarto, os elementos do evento eram "apolíticos" e "consensuais": envolviam famílias vulgares dum lugar comum, crianças, inocentes, felizes e identificadas pela simpatia a um clube de futebol (outra área "consensual" na sociedade), cuja equipa se associou às acções (depois se compreendeu que patéticas) pela sua libertação. Estes elementos permitem uma adesão ainda maior do mais amplo número de pessoas (portanto, de espectadores) às notícias.

Quinto, a tragédia teve um desfecho provisório com a descoberta dos cadáveres que, como noutras tragédias, não foram tematizados. O desfecho definitivo poderá ser a cerimónia fúnebre, criada enquanto "media event" pelos vários operadores britânicos em conjunto com as autoridades.

O caso reunia condições para que a TV se apropriasse dele e misturasse os tempos trágicos com os tempos dos noticiários. De local, nacionalizou-se e, extraordinariamente, mundializou-se, porque as tragédias são universais. Os principais noticiários portugueses abriram com esta tragédia. Assim aconteceu no mesmo dia 20 em que na Suíça a portuguesa acusada de homicídio involuntário da filha bebé que deixou fechada em casa teve o julgamento marcado. Este caso teve menos repercussão na TV portuguesa do que o de Jessica e Holly porque não entrara no fluxo televisivo enquanto tragédia televisiva.