Eduardo Cintra Torres

Enterrando Tabus


Ao contrário do que parece, Los Angeles não é uma cidade mas um gigantesco subúrbio com uma fábrica no meio. Que essa fábrica seja de sonhos altera a imaginação das pessoas, mas não altera a sua substância nem a do lugar e da geografia.

Algures por entre milhões de vivendas, está Chandler à beira da sua piscina com candidatos ao "franchise" do seu negócio piramidal Beauty Vision. No alpendre-gineceu, as mulheres comentam como Chandler é belo: é um adónis perfeito no corpo e no negócio, que sela ali mesmo com um aperto de mão um contrato de "franchise" antes de se lançar à piscina num mergulho perfeito. Não sai dela com vida. Traumatismo craniano. Como Adónis, morre jovem.

E com dívidas. Não deixa dinheiro que chegue para pagar o caixão, muito menos o funeral. Ficamos a saber que o morto era outro, Adónis "renasce" noutra verdade. Nate Fisher, da Fisher & Sons, aceita da viúva incrédula um pagamento do serviço em prestações. Assim começa o 2º episódio de Six Feet Under (Sete Palmos de Terra, RTP2, segundas-feiras). Assim - com uma morte qualquer e um cadáver para tratar - começam todos os episódios.

Nate, o irmão Dave, a mãe Ruth e a irmã Claire são o núcleo de Sete Palmos de Terra. A Fisher & Sons, empresa funerária algures em L.A., também sofreu uma enorme perda. O chefe da família e do negócio, Nathaniel Fisher, morreu violentamente quando ia ao aeroporto buscar Nate para a Consoada. (O 1º episódio, que a RTP não mostrou, começa com essa morte estruturadora da série.)

A cena do Adónis introduziu-nos no mundo das aparências: nada é o que parece na vida dos que morreram. Até o falecido Mr. Fisher, respeitável cangalheiro, tinha um quarto alugado numa espelunca onde confraternizava com "outcasts" da sociedade, ouvia LP de rock & roll e fumava erva com que uma cliente lhe pagava ao mês o enterro do marido.

Era de Nate, o que saiu de casa, e não de Dave, o que aguentava o negócio, que Mr. Fisher mais gostava. Mr. Fisher aparece muitas vezes e conversa com ele. Não é que os mortos voltem, como fantasmas. Os vivos é que os vêem ou sonham com eles e lhes fazem perguntas a que eles já não podem responder. Sete Palmos de Terra tem inúmeras cenas em que os vivos falam com os mortos - ou com os cadáveres que se embalsamam na cave da Fisher & Sons.

Ainda nenhuma série dramática de TV se centrara neste tema extraordinário, difícil mas universal: a morte. Em toda a ficção há mortos, muitos ou poucos, e a codificação da violência tem motivado críticas sobre o mau exemplo que a TV presta. Que dizer, então, desta magnífica série que irradia episódios a partir da sala de embalsamamento e preparação de cadáveres? Que dirá o "moralmente correcto" da nossa estreita sociedade?

Sete Palmos de Terra agarrou tabus que ainda sobram num mundo que julga que já não os tem: o tabu do cadáver é o principal, mas não o único. No segundo episódio, obrigado a tratar do negócio da família, Nate Fisher tem de ir a um lar de velhos buscar o seu primeiro cadáver. A cena aborda três tabus de uma só vez. O primeiro é a visão do cadáver. O segundo é o da exibição do pénis: o cadáver do velho tem uma erecção, caso raro. O terceiro é o dos excrementos: o cadáver defeca na carrinha que Nate conduz, caso raro também.

O principal tabu que a série atinge é o do cadáver. A série mostra cadáveres, enquanto outra ficção audiovisual - filmes de guerra, séries policiais e jogos de consola - dá-nos a ver mortes e pessoas acabadas de morrer. Isto é, vemos simbologia da passagem, não a coisa que fica, vemos mortos mas não cadáveres. Aqui vemos o invólucro, o resto, o corpo que apodrece, já só carne, pele, ossos e vísceras a que é preciso dar um destino. Na cave dos Fisher, o empregado Federico coze, enche, pinta, penteia e veste cadáveres. Por vezes, enquanto os trata, eles estão também em pé ao seu lado, falando com ele. Depois, os cadáveres regressam à superfície num elevador que funciona mal e são expostos para os ritos de passagem com a família e os amigos.

O cadáver é quase sempre escamoteado na arte e na literatura e, por extensão, nas criações audiovisuais. Ao contrário do artístico esqueleto, o cadáver assusta (1). Desde a tragédia grega que a arte de representação do Ocidente enfrenta o dilema de mostrar ou não mostrar o cadáver (2) . Ele coloca-nos perante o lado material da morte. Por isso, criámos uma diferença cultural no tratamento do tema: o fúnebre e o macabro. O fúnebre trata da morte associando-lhe o espírito, a passagem da alma para outro mundo, a sua salvação. O macabro separa o espiritual e o terreno: eis o início do processo de decomposição à nossa frente, a transformação do cadáver em esqueleto. (3)

Culturalmente, invertemos o razoável em absurdo e o absurdo em razoável: para "resolver" a questão da morte nas nossas cabeças, dissociámos a alma do corpo, tornando-a racional e justificando o guardar da memória do morto em simultâneo com a disposição do corpo; e transformámos o cadáver e sua putrefacção num absurdo inimaginável - é o macabro. O cinema e a televisão são sempre fúnebres ou caricaturais no tratamento da morte, raramente macabros.

Sete Palmos de Terra faz a "mostração" (esta palavra devia existir) do cadáver, mas trata o macabro com "souplesse", dando vida aos cadáveres através da imaginação dos vivos e acrescentando-lhe umas pinceladas de humor que não chega a ser negro.

A morte, diz a série, não é nada do que parece. Se descermos à cave da Fisher & Sons veremos como se embeleza o cadáver para enganar os vivos que o esperam no andar de cima. Todavia, isso seria pouco para construir uma polifonia de narrativas. A série diz-nos também que nenhum morto foi o que pareceu e nenhum vivo é o que parece. Têm segredos. Quando se abrem as suas gavetas fechadas (e por alguma razão as trancaram), encontram-se mentiras. Ou outras verdades.

A mãe de família, a impecável Ruth Fisher (Frances Conroy, actriz extraordinária, uma das grandes composições da série), belíssimo ser humano, tinha um amante, e retoma a relação depois da morte do marido cangalheiro

. Claire, a filha, roubou um pé de um cadáver, e ganza-se. Mas não será ela uma rapariga normal, aplicada nos estudos e sabendo distinguir os bons rapazes do lixo?

Dave, o filho certinho ("estável", diz ele), cangalheiro como deve ser, é diácono na igreja católica e homossexual em processo de assunção. (E a série enterra outro tabu ao mostrar imagens de relação homossexual). Será que só ele tem problemas com isso?

Brenda, namorada de Nate, parece uma jovem como outras, mas, com um QI de 185 e um irmão esquizofrénico, será ela anormal?

Sete Palmos de Terra não se faz de narrativas sobre a vida depois da morte. Muito pelo contrário, faz-se de narrativas das vidas dos mortos escondidas nas gavetas e de narrativas da vida dos vivos depois da morte dos mortos. Quem era normal, quem não era? Quem é normal, quem não é? Quem fomos, quem somos? Ao que parece, nada é o que parece.

1) Thomas, Louis-Vincent, "Anthropologie de la Mort" (1975). Paris, Payot, p.249.

2) Deforge, Bernard, "Le Festival des Cadavres: morts et mises à mort dans la tragédie grecque",

3) Thomas, ibidem.