Eduardo Cintra Torres

Literacia Audiovisual: Uma Descoberta para a Cidadania


Em sessões realizadas em escolas do continente e da Madeira, pude verificar quanto a aprendizagem da análise de materiais mediáticos é atraente para professores e alunos. Um dos exemplos que trabalhámos nestas sessões foi um anúncio da marca Alfred Dunhill que serviu de pretexto para o primeiro de uma série de artigos de análise de publicidade que escrevi para a PÚBLICA (série iniciada em 01.10.2000 e interrompida em 17.06.2001).

A partir duma fotografia muito bonita e simples dum dálmata com uma gravata pendurada no focinho construímos uma narrativa completa sobre o dono do cão: ele era quadro da classe média alta, casado e com dois filhos, tinha jipe, morava na «Linha» ou na Foz, clássico mas moderno, sério mas com humor... e por aí adiante: a narrativa explicava o anúncio e este claramente «falava» aos potenciais clientes da marca.

Fizemos também a análise comparada de noticiários (RTP1 e SIC). A sessão de poucas horas foi uma verdadeira descoberta. Foi como aprender a ler. Uma professora disse que não voltaria a ver os noticiários da mesma maneira.

Dado o peso dos audiovisuais na vida quotidiana, na absorção de informação e conhecimento, e dada a sua crescente presença na escola, esta análise crítica da imagem e do som deveria fazer parte dos currícula de professores e alunos. Os anglo-saxónicos chamam a isto a educação para os "media", expressão demasiado feia e que bem poderia ser substituída por outra: a literacia ou educação audiovisual.

Por literacia audiovisual entendo o conhecimento e a compreensão do vocabulário e das técnicas de fazer/construir a linguagem da rádio, da fotografia, da televisão e do cinema. Significa ser capaz de adicionar à apreensão do conteúdo duma mensagem audiovisual a «leitura» e compreensão do que está para além da superfície da imagem e do significado literal das palavras ditas. Significa ter acesso a um conjunto mínimo de códigos, de signos e símbolos, e das razões das escolhas realizadas pelos autores das notícias, dos programas e da publicidade. A literacia audiovisual deve permitir que durante toda a vida possamos ler rádio, ler fotografia, ler televisão, ler cinema: «ler os media», como escrevia José Carlos Abrantes em 1998 na revista do Instituto de Inovação Educacional (IIE).

A literacia audiovisual não é (deveria ser) atributo exclusivo da escola, mas tem estado quase totalmente arredada do serviço prestado pela concessionária pública, a RTP. À parte um programa pioneiro em que fui convidado a participar (Teledependentes, 2001), a RTP1 e principalmente a RTP2 têm sido estéreis nesta matéria. E a própria programação normal, incluindo noticiários, revela uma falta de cuidado tão grande que se vê que os profissionais da informação estão impreparados para entender o que estão a dar a ver e a ouvir. Essa é, aliás, mais uma poderosa razão para que a concessionária de serviço público deva criar o lugar de provedor do espectador, como defendo há vários anos. Ao provedor cabe, de alguma forma, fazer análise de TV a pedido dos espectadores e com a colaboração dos autores de programas e notícias.

Um problema estrutural impedia o programa Teledependentes de contribuir para a literacia audiovisual: baseava-se num diálogo de palavras e não estava pensado para permitir a análise concreta de imagens. Foi, todavia, um programa seminal, que rompeu o lugar-comum de que a TV não se consegue abrir livremente à crítica de si mesma (que não é exactamente autocrítica).

Infelizmente, não foi seguido o modelo de Arrêt sur Images (disponível no cabo e satélite, La 5ème, domingos, 11h30, excepto Julho e Agosto), programa animado pelo jornalista Daniel Schneidermann, exemplo feliz de como é possível fazer crítica sem ser pela escrita e fazê-la, e bem, acerca da TV na TV.

O segredo? Uma equipa de dez pessoas, como me disse o próprio Schneidermann quando esteve em Lisboa este mês para uma conferência no Instituto Franco-Português organizada pelo Centro de Investigação Media e Jornalismo, CIMJ. Mas não só: o programa é uma experiência contínua (vai no sétimo ano). Nele vêem-se imagens, ouvem-se reportagens, compara-se, fazem-se levantamentos, critica-se, dialoga-se, entrevista-se. Autores de notícias e responsáveis editoriais ou empresariais de TV têm ali um forum para debater, mas também para serem confrontados.

Arrêt sur Images usa os écrãs por trás do entrevistador e convidados dinamicamente, «dialogando» com o próprio decurso do programa: é possível ver neles as imagens do que se estará falando ou ver as caras doutros intervenientes ou membros da equipa de análise enquanto se interpelam.

Schneidermann é francamente melhor como autor e animador deste programa do que como crítico de televisão ("Le Monde", sábados). Parece verificar-se um curioso fenómeno de troca de "media": os seus textos vagueiam sem encontrar um destino consistente, como se fossem um magazine televisual, enquanto o seu programa de TV tem a consistência de um bom texto escrito, com objectivos bem delimitados e chegando sempre a bom-porto.

É curioso que Arrêt sur Images utilize como analistas de imagens de TV crianças com cerca de 12 anos. Com a colaboração de escolas, o programa mostra extractos do que dizem crianças sobre reportagens, com resultados fantásticos. Os 12 anos são a idade-limite, segundo Piaget, em que as crianças dizem tudo sem constrangimentos e com o vocabulário dos adultos. E, curiosamente, enquanto a imprensa escrita fala dos mais novos sem lhes dar voz - esse é um dos temas da tese de doutoramento de Cristina Ponte, apresentada na passada sexta-feira - a TV abre-se facilmente ao discurso das crianças e dos jovens, até mesmo sobre a própria TV. A última edição de Hora Extra, de Conceição Lino (SIC, 17.07) foi um notabilíssimo documento televisivo sobre a forma como as crianças e a televisão se inter-relacionam, tendo dado voz não só aos especialistas, que é o habitual, como às crianças e aos professores que as conhecem: foi um programa profundo, com excelentes reportagens e testemunhos, e uma lufada de ar fresco nas palavras desassombradas. Serviço público no seu melhor.

As crianças têm, tanto como os adultos, a autonomia do espectador que Edgar Morin recordava numa sessão recente do Centro Nacional de Cultura. Sabem o que vêem, mas faltam-lhes ferramentas adequadas para a ginástica mental da análise crítica, tão importante para a cidadania.

Era bom que o sistema educativo iniciasse de vez o ensino não só das primeiras letras como das primeiras imagens e dos primeiros sons. Começar a educação audiovisual, a literacia audiovisual - eis uma tarefa tão fácil e tão importante que faz pena que não tenha já começado a sério como programa curricular. Pelo que a Hora Extra mostrou, as crianças e os professores estão maduros para essa descoberta.