Eduardo Cintra Torres

Séculos Diferentes


O primeiro episódio da série documental «Século XX Português» passou na SIC generalista a caminho da madrugada e a série foi depois retomada pela SIC Notícias. O «Século XX Português» foi provavelmente a última fantasia de luxo da televisão generalista privada em muitos anos. Com os dois operadores privados geridos com mão-de-ferro e a fazer contas ao cêntimo, será totalmente impossível que esta experiência se repita. Só mesmo com Emídio Rangel de rédea livre à frente da SIC teria sido possível a um canal falido apostar numa série destas, terminada em 2001.

Porque o «Século XX Português», de que passa hoje o quarto episódio (SIC/N, 23h00), é um dos melhores projectos televisivos que se têm feito em Portugal nos últimos anos. A qualidade de conjunto é muito boa e merece ser festejada, mesmo com Rangel, autor da ideia, dum lado e a SIC do outro, mesmo que Rangel não tenha feito na RTP nada que se assemelhe a este serviço público, mesmo que a SIC esteja de luto forçado em relação a qualquer projecto semelhante.

É paradoxal que o melhor documento sobre o século XX português tenha sido realizado por um canal privado nas lonas e que a concessionária de serviço público, a RTP, e entidades como a Universidade Aberta, não tenham conseguido ou desejado produzir uma série desta valia. Se do lado das instituições de ensino nada foi feito, já a RTP produziu e apresentou em devido tempo uma série, «A Crónica do Século», que se revelou medíocre, típica duma repartição de Estado sem estaleca, sem criatividade e entusiasmo.

A série da SIC (realização de Joana Pontes, autoria de J. Pontes e Luís Marinho) partiu de princípios de TV muito simples. Em primeiro lugar, trata-se de um documento audiovisual, o que implica adaptar o conhecimento às regras do audiovisual e não o impossível contrário. Em segundo lugar, só é possível criar uma narrativa se houver imagens. A busca de imagens em movimento, fotografias, desenhos e imprensa foi muito alargada e o resultado é plenamente satisfatório. Há nesta série imagens em movimento raramente utilizadas. A RTP não usou este material, propriedade do Arquivo Nacional de Imagens em Movimento ou de arquivos estrangeiros, provavelmente por não existirem cópias no seu próprio arquivo. Desta forma, sem orçamento disponível para comprar imagens fora, a série da RTP ficou diminuída.

Em terceiro lugar, uma cuidada atenção à banda sonora, com boa leitura em voz off, com reconstituição dos sons da guerra, com música adequada e com a surpresa da interpretação por Camané de quatro fados escritos por soldados na frente de guerra em 1917, com música de Alfredo Marceneiro.

Em quarto lugar, o «Século XX Português» recolheu um amplo leque de depoimentos vivos, mesmo sobre os primeiros anos do século. Nada substitui uma história contada por quem a viveu. Pode um historiador ou um escritor recriar um ambiente e analisar a história com rigor, mas não se aproxima duma imagem em que ouvimos um contemporâneo dizer como foi quando alguém trouxe a notícia de que «mataram o rei!».

Os depoimentos da série da SIC são nesse sentido muito interessantes. Mesmo que se desejasse neles um pouco mais de conteúdo, é impossível resistir-lhes na sua função de «porta de entrada» no passado. O primeiro episódio foi exemplar, dada a dificuldade em encontrar pessoas vivas, com quase ou até mais de um século de vida. A série reuniu um soma de depoimentos significativa (que se espera tenham sido mantidos na íntegra, tal como os que a RTP também reuniu, dado o seu valor histórico): do homem do povo à aristocrata, ficamos com uma paleta rica sobre os dois mundos entre si ignorados que se preparavam para chocar nas ruas e nos campos: o dos pobres e o dos outros, às vezes ricos, outras vezes nem tanto.

Os muitos depoimentos vividos são nesta série vitais como em todos os documentos deste tipo (e não só; a história oral deveria ser uma área de intervenção urgente das universidades, e não apenas na História política pós-25 de Abril, isto é, a história do poder, como tem feito a Universidade de Coimbra).

Na série da SIC temos ouvido depoimentos não só interessantes como reveladores; por exemplo, a participação numa «missa clandestina» no Alandroal durante a Primeira República, o tempo em que se «lia o jornal em voz alta» (experiência que foi substituída depois pela audição da rádio ou a visão da TV em grupo); descrições da miséria dos pobres; uma sobrevivente da gripe pneumónica dizendo que os mortos eram tantos que «iam às carroçadas»; um sobrevivente de La Lys chorando os mortos e comentando «e aquilo [a França] não era nosso... Mas quem manda é que sabe»; a neta de João de Deus citando a sua frase «ser homem é saber ler»; ou o filho duma testemunha do assassínio de Sidónio Pais referindo um facto inédito de que o Presidente trazia escondido no bolso, empunhando-o pronto a disparar, um mini-revólver que se lhe soltou da mão no momento em que morreu baleado sem ter tempo para dizer as palavras célebres que um jornalista, o Repórter X, depois inventou.

A série da SIC não recorreu, como a da RTP, aos depoimentos de historiadores. Fez bem, pois estes são quase sempre redundantes: dizem o mesmo que o texto lido em voz off, são «barrigas de aluguer» audiovisuais; são úteis quando não há testemunhas vivas. A série da SIC construiu uma narrativa correcta mas com base nos testemunhos vivos e na riqueza de imagens, enquanto a série da RTP foi «feita ao contrário»: tinha um guião escrito que se procurava encher de imagens ou de conversa de historiador até o enchido ficar com o tempo regulamentar.

O «Século XX Português» dividiu a história de forma a ter um momento chave em cada episódio, organizando o resto em redor: o regicídio, a instauração da República, a participação de Portugal na frente europeia da 1ª Guerra Mundial. A série tem sido correcta quanto à narrativa e à análise históricas, havendo pormenores que poderiam ter sido mencionados. Por exemplo, o predomínio da Maçonaria no Partido republicano e nos governos de Afonso Costa, facto fundamental para entender a República ou o esclarecimento exacto de que Portugal estava de facto em guerra contra a Alemanha em África desde 1914, dois anos antes da declaração oficial de guerra entre os dois países, facto escamoteado durante dezenas de anos pela historiografia.

São, todavia, detalhes de interpretação, não são erros (quanto a estes, só reparei na referência a António Granjo, assassinado em 19 de Outubro de 1921, como ex-primeiro-ministro, quando ele era efectivamente chefe do governo; e na referência dum sobrevivente a festejos na passagem para o século XX, que não me parece exacta). A série tem um bom elencamento dos principais temas da história do poder e do povo, integrando as questões na narrativa sem fazer delas "fait-divers" como aconteceu na série da RTP.