Eduardo Cintra Torres

Romances de Passagem (com Chinela no Pé)


Poor Professor Higgins! Poor Professor Higgins! A muito custo, o grande mestre de fonética Henry Higgins lá fez de Eliza Doolittle, vendedora de flores, uma lady, uma fair lady. No fim, como Pigmaleão, apaixonou-se pela sua criação: o professor casa-se com a estátua que moldou. Eliza Doolittle, a nova lady, tornou-se duplamente sua - foi feita à sua imagem e foi sua mulher - justificando-se assim cada uma das três palavras do título do filme para a peça de George Bernard Shaw: My Fair Lady.

Nas "novelas da vida real" as coisas nem sempre correm da mesma maneira. A Gisela Doolittle deu com os pés ao Grande Mestre e anda no laró longe dos écrãs da SIC, passando férias e dando entrevistas a troco de alguma coisa. Ora bem! O povo anda muito mais esperto do que eu escrevia há duas semanas! O Grande Mestre ensinou a Gisela a ser uma lady da TV, preparou-a para ser uma "conhecida", deu-lhe, como o infatigável Higgins, uns rudimentos de refinamento de linguagem e de maneiras à la TV - mas a Gisela não se deixou domesticar! Já é uma lady da TV, mas não é "fair"! E muito menos é "mine" deles, da SIC e da Endemol! Ao contrário, "the lady is a tramp"!

O Masterplan, sem regras à vista, tem uma regra de produção importante: a Endemol permite aos concorrentes tornarem-se "conhecidos" e estes participam no jogo, isto é, na jogada, comprometendo-se a ficar na órbita do programa após a "expulsão". Foi aí que a Gisela gaiata-de-chinela-no-pé se pôs a milhas. O pretexto foi Herman José ter quebrado com a Gisela uma regra não escrita daquele jogo de representações ao chamar-lhe malcriada (ele, que espicaça o que há de mais instintivo e básico nos concorrentes!). Nos reality shows da TVI Teresa Guilherme já cometeu o mesmo erro de incorrer num tratamento desigual face aos concorrentes e quebrar a fina linha vermelha que estabelece o relacionamento entre apresentadores e concorrentes.

Quando a Gisela Doolitle desapareceu, o apresentador do Masterplan ameaçou-a em directo via TV com um "processo em cima" (como diria um personagem criado por... Herman José) por quebra do contrato com a Endemol. A concorrente nem se dignou responder, mas a produção do "jogo" e a SIC não levarão por diante nenhum processo judicial. Confirmou-se que este tipo de programas leva a que o canal emissor entregue o seu carácter aos concorrentes, pessoas incontroláveis. A par de Manuel Fonseca, a Gisela foi programadora da SIC. O Grande Mestre fez a estátua, apaixonou-se por ela, mas, ao contrário do mito, a estátua fez o que lhe apeteceu e não deu cavaco à paixão de Pigmaleão. Poor Grande Mestre!

Todos os concursos chamados "jogos de realidade" (reality games) criados nos últimos anos, como Masterplan, Big Brother, Bar da TV, Academia de Estrelas e Operação Triunfo giram em volta dum objectivo: ensinar os concorrentes a transformarem-se em "pessoas TV". Os concorrentes chegam desajeitados, sem saberem falar, cantar, conviver, arranjar-se, etc, e estes concursos proporcionam-lhes o que é necessário para "vencer na vida" da sociedade mediática.

Primeiro, dão-lhes tempo de antena para se tornarem "conhecidos" por habituação dos espectadores. O que torna uma pessoa "conhecida" não é o fazer alguma coisa na vida, não é fazer, é apenas ser - quer dizer, o tempo a passar. A TV é por isso tão atraente para quem não tem preparação académica ou profissional.

Segundo, ensinam os anónimos a saberem ser "conhecidos". É justo sublinhar que nem todos conseguem tornar-se "conhecidos", há uma sabedoria que só alguns conseguem apreender. Quando chegam a estes programas, os concorrentes são umas "pessoas quaisquer", que não sabem "ser". Semanas mais tarde, são "conhecidos" mas só alguns sabem "sê-lo": o Zé Maria teve o seu programa na TVI, a Rosa que ganhou na TVE a Operácion Triunfo não só melhorou espectacularmente as suas capacidades de representação e canto como emagreceu umas dúzias de quilos - isto é, foi a Eliza Doolittle da Operação Triunfo. A TVE casou-se com a Rosa.

Este "jogos de realidade" são a última invenção numa linhagem com raízes nos primórdios da TV comercial, confundindo-se com ela: os concursos. Desempenham a função de permitir aos anónimos a "experiência audiovisual" que lhes aumenta a auto-estima e se incorpora na essência do Eu. "Eu fui à TV" tem um valor social e psicológico importante na sociedade contemporânea. Os concursos de pergunta-resposta dos vários canais (e os da RTP, mesmo oriundos da BBC, são idênticos aos da TV comercial) enchem-se de pessoas que concorrem em primeiro lugar para "aparecer na TV" e só depois para ganhar prémios ou pelo prazer lúdico. Muitas pessoas perdem dias de férias e viajam centenas de quilómetros à sua custa só para "aparecerem na TV", sendo-lhes irrelevante se exibem ou não uma esplendorosa ignorância nas respostas do jogo.

A mais importante característica dos "jogos de realidade" seria então esta que surge incipiente nos concursos de pergunta-resposta: proporcionar em simultâneo a aprendizagem do ser-se conhecido da e na TV e o tempo de antena para se ser conhecido.

Conseguir ser "conhecido da TV" é o caminho preferido para deixar a pobreza e o pior dos estigmas, o anonimato. Hoje, pobreza e anonimato andam a par. Ver uma sessão do Masterplan é ver os concorrentes a conseguirem desenvencilhar-se na tarefa de se comportarem perante as câmaras de forma a reconstruirem a sua personalidade pública num sentido em que esta seja apreciada pelo maior número de espectadores. A grande atenção com que as pessoas olham para as intervenções dos concorrentes revela que muitos espectadores consideram essas conversas aparentemente banais uma prova importante dos concorrentes na via do estrelato TV.

Na sexta-feira, a concorrente Sandra despediu-se do Masterplan com a alegria, referida por ela e por Herman, de ter refinado a sua aparência televisiva e ganho a notoriedade que lhe poderá permitir deixar para trás um passado realmente difícil. Para o canal, ficou a alegria de a Sandra ter aguentado as audiências que a Gisela proporcionara. Tal como a Eliza Doolittle se transformou no professor que a inventou para a sociedade e o conquistou para o casamento, também a Sandra se transformou no canal e tomou conta dele. No caso da Sandra, acabou bem, no caso da Gisela... Mas nem todas as estórias podem acabar bem, não é?

Com a Sandra, o objectivo do concurso foi alcançado de parte a parte e esquecidas serão por todos, concorrente e espectadores, as cenas de peixeirada e as provas que o pobre Grande Mestre manda fazer para encher o olho "voyeur" dos espectadores. O reality show é o "Bildungsroman" da televisão, é o "Bildungsprogramm": o programa que relata a passagem da idade do anonimato do concorrente à verdadeira idade adulta do nosso tempo, o "ser-se conhecido".