Eduardo Cintra Torres

O Outro Canal


O Governo não deve alienar um canal de televisão do Estado só por haver quem o queira comprar. Se há capitalistas interessados no negócio de televisão, então que comprem capital da SIC, da TVI ou dos operadores por cabo: isso, sim, seria o mercado a funcionar já hoje. Não é sério chamar-se "mercado" à mão estendida que espera que o Estado aliene um canal em concurso de beneficiência.

Mas não há vantagem para os espectadores em mais um canal generalista privado, pior ainda é que o Estado mantenha o actual modelo "ping-pong" de dois canais generalistas, um para "estúpidos" e outro para "inteligentes". O modelo não produziu televisão de referência em nenhum dos canais. Foi por ter falhado redondamente que capitalistas e outras pessoas se posicionam agora para o caso de se alienar um dos canais.

Julgo não ser necessário um segundo canal generalista (do Estado ou privado). É possível e até aconselhável que a televisão de programação geral que o Estado deve providenciar aos cidadãos em 2002 se concentre num único canal generalista. Mas o outro canal de que o Estado dispõe pode ser transformado num canal de cidadania.

Tendo em conta que o actual Governo, ao contrário do anterior, criou uma janela de oportunidade de actuação no modelo da televisão do Estado, vale a pena propor o lançamento no outro canal de um verdadeiro serviço do Estado à sociedade civil e feito com ela, proposta que há muitos meses avancei nesta coluna.

Que outro canal é este? E qual a sua programação?

1) O outro canal inclui toda a programação de obrigação legal, como sejam os tempos de antena. O formato dos tempos de antena, totalmente desajustado da vida pública actual, é entretanto revisto. Há tempos de antena que parecem anúncios publicitários de congressos sem mais-valia nem para os associados das organizações a que dizem respeito. Os tempos das associações podem até ser aumentados, mas têm de ter conteúdo e ser actuantes, o que deve ser proporcionado pela regulamentação.

2) O outro canal inclui os tempos consignados a confissões religiosas. Também neste caso, terá de ser revisto o formato em que as igrejas se relacionam com a televisão do Estado.

3) O outro canal tem um amplo programa diário dedicado ao Parlamento e à relação dos cidadãos com a Assembleia da República. Há dois anos, depois dum artigo em que critiquei o anedótico Canal Parlamento, o então presidente da Assembleia, Almeida Santos, escreveu uma longa resposta a ralhar-me, explicando no seu estilo de professor primário à antiga (sempre mascarado de democrática paciência) que o Parlamento estava a fazer milhões de coisas para ter um verdadeiro canal parlamentar... Foi o que se viu. Os anos passaram e o Parlamento revela não ter vocação para isso.

Todavia, é importante a informação sobre o Parlamento, não porque os deputados a mereçam mas sim porque os portugueses a merecem: temos de poder saber o que estão a fazer os eleitos, o que está a fazer o plenário, o que fazem os grupos parlamentares, o que fazem as comissões, por onde andam os deputados, se se reúnem com cidadãos, por que foram importantes as reuniões internacionais em que participaram, etc. Mais: pode criar-se uma relação interactiva dos deputados com a nação, hoje difícil devido à natureza (felizmente) "antimediática" do Parlamento. Desta forma, podem os portugueses fazer perguntas a um deputado por dia num espaço a tal dedicado. Além disso, o outro canal tem debates e informação escrita sobre leis aprovadas, discussões agendadas, a forma de os cidadãos contactarem os deputados, etc. Este programa parlamentar, com uma a duas horas diárias (não havendo plenário), seria feito por jornalistas ao serviço da televisão do Estado (e não do Parlamento) que estariam em permanência no hemiciclo.

4) O outro canal tem uma ligação fulcral com as regiões existentes, isto é, distritos e regiões autónomas. Num país pequeno e uno como é o nosso, a única regionalização que é hoje realmente necessária é a regionalização mediática. Os portugueses de qualquer lugar do país devem sentir-se representados pela televisão do Estado. Ora, se há área em que a "ditadura" de Lisboa e Porto existe é na televisão (só muito ligeiramente atenuada com os noticiários regionais da RTP). O outro canal proporciona uma verdadeira informação regional e regionalizada, feita em cada distrito por profissionais do próprio distrito e dirigida à sua população e a toda a nação. Esta atitude desbloqueia a o próprio conceito de serviço público, pois cria um jornalismo cívico, de proximidade, que hoje não existe.

5) O outro canal abre-se à experimentação e à vanguarda. Grupos de teatro, musicais, escolas de artes e de cinema e até grupos de cidadãos enviam trabalhos em vídeo que, depois de escolhidos em função de critérios de qualidade mínima de emissão, são apresentados a todo o país (mesmo que de madrugada, permitindo-se assim o acesso à televisão a pessoas e grupos com valor e a sua eventual "recuperação" para outros horários e até para o canal generalista).

6) O outro canal tem uma importante componente educativa e de ligação às universidades, instituições de educação, etc. Cabe às próprias escolas organizar processos de transformar a sua informação em noticiário académico e a sua formação em material videográfico. As escolas sem essa vocação podem criar uma rede com as escolas equipadas com estúdios de televisão, como são as de jornalismo e de artes. As emissões da Universidade Aberta (também a precisarem de reforma) inscrevem-se neste domínio.

7) Outras áreas podem ter expressão, como fundações (por exemplo, por que não haveria a Fundação Gulbenkian de colocar registos dos seus concertos neste canal?) ou a formação profissional.

8) O outro canal é o lugar de eleição para a apresentação de material do arquivo da televisão do Estado numa emissão de cerca de duas horas por dia com imagens devidamente tratadas e reposição dos melhores programas da RTP.

9) O outro canal transmite os tempos do aparelho de Estado indicados na legislação em vigor.

Esta programação seria coordenada e escolhida pela televisão do Estado, sob a direcção dos seus responsáveis na área da programação e informação, sem sujeição a "lobbies". A direcção dos canais do Estado deve ter poder total para aceitar ou rejeitar programas, mesmo dentro dos horários alocados a instituições da sociedade, não por motivos censórios, mas por adequação à legislação em vigor no que toca a conteúdos e por motivos de qualidade técnica.

A ligação do outro canal à sociedade civil permitiria verificar da adequação de, no futuro, instituições sérias como universidades e fundações e algumas organizações de interesse público poderem assinar contratos plurianuais (dois ou três anos) para elas mesmas gerirem espaços horários sem intervenção da direcção da TV do Estado.