Eduardo Cintra Torres

Plano de Mestre para Descaracterizar a TV


Já lá vai a época em que Wordsworth (1770-1850) podia dizer que "A Corrente corre ainda, e para sempre correrá;/ A Forma permanece, a Função não morre nunca." Insinua-se no nosso espírito a mudança da forma como um valor positivo do corpo e da sociedade. À mudança veloz da ideia, de conceitos, associa-se a da forma, das formas.

As pessoas mudam de cara e tiram a barriga; as empresas, também, fazem "downsizing" como quem se prepara para uma temporada na praia. As pessoas mudam a forma e a cor do cabelo. Mudam de casa e mudam de emprego, de carro e de ideias, de cônjuge ou parceiro. Mudam de moda e de telemóvel, ou pelo menos da sua pele. Mudam de vida. Muitos que não mudam gostariam de mudar.

A SIC tem agora o programa mais mutante da TV portuguesa. Chama-se Masterplan, é apresentado por Herman José (a Teresa Guilherme da SIC) e é um sucesso de audiência.

O Masterplan não tem lugar certo como os outros concursos. Os concorrentes estão em casa, num hotel, numa loja, numa rua, num ginásio. O concurso tem a mesma vontade de mudança que se apossou dos humanos e também nele o centro nevrálgico da comunicação interpessoal passou para o telemóvel. É através dele que os concorrentes recebem instruções do "grande mestre", isto é do produtor, também ele sem forma, sem corpo, sem voz, impessoal; o "Mestre" foi criado à imagem de Deus, invisível e omnipresente, sempre em toda a parte e a vigiar-nos, como as câmaras em cima dos concorrentes.

No Masterplan, Deus não escreve tábuas de pedra, escreve mensagens pelo telemóvel. Vicário de Deus e sem forma, o "Mestre" assemelha-se mais ao Big Brother do livro de George Orwell do que o outro programa da Endemol precisamente chamado Big Brother. Mas apenas nisso. Porque, ao contrário do personagem orweliano, o Masterplan quer dominar as audiências sendo dominado por elas.

O programa tem regras falsamente rigorosas, porque a regra principal é que decorra como a produção quer, e a produção quer que decorra da forma que os espectadores quiserem, isto é, de acordo com a audimetria e as mensagens recebidas por e-mail.

A regra do concurso é fazer a SIC aumentar a sua audiência. Para isso, tem de agradar aos espectadores, mesmo chocando-os prazenteiramente com encenações de tareia ou com personagens exibindo o corpo, à beira de um ataque de gritos ou de iniciar qualquer coisa relacionada com sexo.

O Masterplan representa o zénite em que a produção capitalista de programas e pessoas populares sem qualificações profissionais se exploram mutuamente durante um período considerável de tempo. O caso da concorrente Gisela é exemplar. A produção do programa escolheu-a por ela ser tão irritante, tão Lisboa-gaiata-de-chinela-no-pé, que haveria de atrair audiências. Assim foi. O concorrente Nelson, simpático, esgotou-se mais rapidamente. Estas pessoas, de quem se esperaria que tivessem 15 minutos de fama, são tornadas interessantes em muitas horas de TV. Foi o que sucedeu no Big Brother (mas o modelo esgotou-se) e no Masterplan. Ver um concorrente desenvolvendo o personagem ("vocês passam a ser parte de um argumento", disse Herman José a um deles) é uma aprendizagem para os espectadores que em estúdio à sexta-feira bebem de forma atentíssima cada frase dos concorrentes e para crianças e adolescentes que vendo o programa aprendem relações sociais e comportamentos.

Numa época em que não há heróis à antiga (porque o heroísmo passa por violência, isolamento, martírio, sacrifício, por estar contra os do seu tempo), só mesmo personagens anónimos poderiam transformar-se nos novos heróis do nosso tempo: através dos "reality" e "talk shows", a TV desempenha este papel "a pedido" da sociedade, ou pelo menos de acordo com ela. É por isso que os concorrentes do Big Brother ou Masterplan não têm apelido, apenas nome próprio: deixam de ser pessoas concretas e passam a personagens tipificando heróis.

A Endemol deixou as regras em aberto para poder mudar de concorrente. A certa altura, produção, concorrentes e espectadores entendem que aquela pessoa, por mais bonita que seja interiormente, já estabilizou no seu personagem mediático, já se repete, já passou por todos os testes que havia que passar nas "ordens" do "Mestre".

Os próprios concorrentes fartam-se do personagem que eles mesmos desenvolvem mas são obrigados a representar 24 horas por dia. É aquilo a que Alain Erhenberg chama "a fadiga de se ser si mesmo". Suponho que foi isso que sucedeu a Gisela: fartou-se de ser a "Gisela do Masterplan" e deu o pira sem explicação plausível.

Mas os concorrentes são tão explorados pela produção como exploram a oportunidade de ganhar o bem mais valioso para os despossuídos da sociedade contemporânea: ser "conhecido" (isto é, construir um "self" mediático) e transformar a fama em dinheiro. Há dois anos escrevi um artigo chamado "O povo está mais esperto" para dizer que os despossuídos aproveitam a necessidade de a TV ter representantes da audiência no écrã para ganharem fama e dinheiro nos concursos e outros programas... feitos de forma a que toda a gente possa ganhar algum prémio ou apenas "aparecer".

Há anos atrás na RTP conheciam-se os concorrentes crónicos de concursos de pergunta-resposta. Os jornais parasitas da TV, como o 24 Horas e o Tal & Qual, noticiaram nos últimos meses vários casos de despossuídos - como a própria Gisela - que se vão especializando em "reality shows". O povo está, de facto, mais esperto: esses concorrentes são pessoas que não têm nada a perder a não ser a intimidade e têm um mundo a ganhar, de fama e dinheiro. Mas no processo muitos magoam-se ou são esmagados com as ervas do caminho.

No Masterplan, os concorrentes são descartados quando se esgotam os seus poucos ou muitos blocos de 15 minutos de fama. Os espectadores fartam-se dos concorrentes. Os concorrentes fartam-se de representar o seu próprio personagem. O operador de TV impacienta-se se a audiência diminui. Então muda-se a forma: muda-se de concorrente, mudam-se as ordens, muda-se de familiares e de ordeiros ou desordeiros espectadores na plateia do programa semanal. Muda tudo, excepto o apresentador e o telemóvel.

O problema do Masterplan, ao não ter forma, é o mesmo da política quando não tem rumo e segue as sondagens. Rouba a personalidade à estação emissora, descaracteriza-a. Rouba-lhe o poder que ela tem, que é o poder fantástico da liberdade de criar programas com carácter, com estrutura, com uma ideia. Ao produzirem programas como o Big Brother ou o Masterplan, as estações de TV prescindem do que é especificamente seu. Mas, a avaliar pela audimetria e pela satisfação da SIC, pode ser que isso seja o que querem os programadores e muitos espectadores dum mundo pós-moderno em que a forma é um embaraço.