Eduardo Cintra Torres

A Responsabilidade Social da Crítica Pública


Segundo alguns leitores e intervenientes no processo político-mediático, o crítico de TV do PÚBLICO deveria apenas deleitar-se em divertir com espírito a sua própria audiência escrevendo prosas informadas sobre este ou aquele programa. Não seria diferente o que se pretende para todos os críticos que escrevem nos "mass media" sobre outros "mass media" ou sobre a literatura e as outras artes elevadas com direito a uma Musa cada uma.

Longe está de quem tal pensa, naturalmente, coarctar a liberdade do crítico. Apenas acham que o crítico deve recatar-se, resguardar-se. Digamos que deveria limitar-se à crítica de flores mesmo que as flores floresçam num campo de concentração.

Um crítico literário alemão, zelando pela máxima independência da actividade, defendia que a crítica "não se situa contra a censura para lutar contra ela": logo, não lutava contra ela. A crítica, dizia outro na "Allgemeine Literaturzeitung", "distancia-se de tudo". Isto passava-se na Alemanha em Agosto de 1944.

Assim, o crítico de TV deveria calar-se enquanto o país em chama debatia tudo o que tem a ver com a TV. Deveria fazer como os críticos literários na imprensa que se arredam dos livros que não gostam, dos livros que centenas de milhares dos seus concidadãos lêem e dos temas da edição.

Esquecendo que, ao escreverem na imprensa não fazem de "scholar critics" mas de "críticos públicos" - para usar a distinção de Northrop Frye - não sujam a vista nem as mãos com obras de "estilo baixo", como o faz, a toda a hora, o crítico de TV. Deixam isso para os "scholars" futuros que estudarem nas universidades o que os antepassados leram.

Este alheamento que nas reprimendas se recomenda implicitamente aos críticos de TV fez-me lembrar um conto de Rudyard Kipling chamado "The Finest Story in the World". O narrador conhece um bancário, pobre e suburbano, que é de vez em quando possuído pelas suas anteriores encarnações, nomeadamente a dum escravo grego remador numa nau de guerra que, como lhe competia, falava em grego demótico ou popular.

Tendo nas mãos um texto escrito em grego demótico pelo ignorante bancário, o narrador corre a mostrá-lo ao velho especialista do British Museum. O professor identifica o documento: "É uma tentativa de escrever num grego extremamente corrupto por parte de um - e aqui ele fixou em mim um olhar com intenção - de uma aã... pessoa extremamente iletrada." O especialista (naturalmente) ignorou com sobranceria o documento: se ele ao menos fosse antigo! Assim pensam também os que querem empurrar os críticos para as flores que florescem na televisão.

Se o crítico público de literatura deve ignorar o livro popular só porque à partida ele não tem qualidade literária, que deveria então fazer o crítico televisivo? Se ignorasse o que na aparência não tem valia estética deixaria de lado a esmagadora maioria da produção televisiva, incluindo a que é vista pelos seus próprios leitores. Que diriam estes? Tem sentido o crítico ignorar o que os leitores do crítico não ignoram?

E estamos ainda no domínio da estética. Recusando criticar programas televisivos por bradar aos céus a sua falta de valia estética, o crítico imitaria a atitude "blasé" de críticos públicos de literatura (em parte justificada, pois a crítica não se faz com critérios sociológicos ou outros, mas com os seus próprios). Mas até que ponto pode a crítica pública ignorar o impacto das obras - e as obras que têm impacto?

Estas questões são tanto mais pertinentes porquanto a actividade televisiva e outras actividades criativas, como a literatura, vão conhecendo crescentes convergências: a TV tem desenvolvido o seu lado artístico, pelo que os critérios da crítica pública de TV se aproximam dos das críticas das artes com direito a Musa; a fragmentação dos públicos de TV faz com que muitos dos programas sejam produzidos para minipúblicos e vistos por menos pessoas do que muitas novas obras literárias consagradas, pelo que não é a quantificação da recepção que pode estabelecer diferenças na atitude crítica; muita criação literária é hoje em primeiro lugar produção literária, um negócio como a criação-produção televisiva.

Desta forma, o crítico de TV e o crítico público de literatura são, em grande parte, críticos da mesma coisa - "mass media" diversificados e criativos - e usam as mesmas ferramentas. A diferença está em que o crítico de TV tem menos preconceitos, ou tem outros, quando analisa criações de "baixa cultura". Desde logo porque a TV sempre foi um fenómeno profundamente sociológico. Isso não significa ausência de critérios estéticos, pois não há conteúdo sem forma e não há "social" em TV sem expressão visual e auditiva.

Mas, a par da estética, o crítico vê, no outro prato, valores pesados que não pode ignorar. Antes de todos, a sociedade. Espelho, janela, ou até holograma, a TV reflecte a realidade e, por precisar de audiências, tenta recriá-la nas suas inúmeras facetas. Assim, o lado sociológico sobressai na análise, tanto mais que, para simular não ter dimensão estética, a TV finge-se naturalista até à medula. Mentirosa ou verdadeira, mais ou menos ficcional nas histórias e nas estórias, a televisão transpira sociedade por todos os seus "pixels".

Impregnada de sociedade, sensibilíssima através da audimetria às suas escolhas, a TV é ainda importante no enquadramento político, institucional, económico e empresarial. Como ignorá-lo? Como ignorar o debate da sociedade sobre a TV, não só pela sua ressonância como pelo facto de a sociedade querer falar do que vê nesse seu espelho-janela-holograma? Esta dimensão faz com que a crítica transborde de si e se faça comentário, mas o crítico público tem uma responsabilidade perante os seus leitores: a sua responsabilidade social ao participar no espaço público. Não pode ficar de fora do debate que a sociedade exige, no exercício da liberdade e no âmbito da democracia.

A crítica dos "mass media" tem assim um leque temático que ultrapassa a actividade normal da crítica de obras isoladas e tem de criar uma agenda nessa matéria ou, no mínimo, responder a uma agenda que a própria sociedade lhe impõe, nem que seja pelo poder simples da massa, do número de espectadores. Julgo que a atenção (não a submissão) a esse leque temático deveria caracterizar todas as críticas públicas e não apenas a televisiva.

A responsabilidade técnico-criativa do crítico tem de conviver com a responsabilidade social que a sua participação no espaço público exige. Escrevia o sociólogo Émile Durkheim em 1893: "Por nos propormos antes de tudo estudar a realidade não resulta que renunciemos a melhorá-la; as nossas investigações não mereceriam uma hora de trabalho se apenas devessem ter um interesse especulativo." Se fosse especialista em grego demótico, Durkheim teria querido conhecer de imediato o pobre bancário possuído por uma antiquíssima encarnação.