Eduardo Cintra Torres

Sem o Baião na TV Pública a Pátria Morre!


Na semana passada faltou-me tempo para tornar o artigo mais curto. Não abordei o terceiro «argumento do costume» invocado no PREC da RTP: o da segurança nacional. O seu nobre arauto foi o general Loureiro dos Santos, que forneceu matéria aos defensores do modelo actual do serviço público ("DN", 30.04), em especial a quem logo o começou a citar: António-Pedro Vasconcelos, o grande Truffaut português (tem um metro e noventa, segundo julgo).

A «segurança nacional» foi o argumento patético e envergonhado (para não dizer vergonhoso) que o antigo gestor público Consiglieri Pedroso usou para chumbar outro gestor público, Almerindo Marques, de tomar posse na administração da RTP.

O artigo de Loureiro dos Santos fez-me recordar o belíssimo ano que passei no Instituto da Defesa Nacional em 1985. O Curso de Defesa Nacional era um forum importante para militares e civis cruzarem diferentes perspectivas de ver o país. Mas a direcção das Forças Armadas queria também que os civis vissem as suas actividades subordinadas aos interesses superiores da pátria, isto é, enquadradas no seu próprio conceito de soberania, de segurança e, porque não dizê-lo, de democracia.

O general é muito claro em dizer que «só» a TV do Estado poderá garantir «a manutenção e aprofundamento da identidade nacional». Este é o ponto de vista que tradicionalmente subscrevem os funcionários públicos militares: aceitam a inevitabilidade da organização capitalista e democrática da sociedade, mas acham que os empresários, mesmo patriotas, se vendem por um prato de lentilhas na primeira oportunidade. Isto está escrito, por outras palavras, no artigo.

A conclusão pouco lógica do general é que é preciso dois canais do Estado e não um. Porquê? Por causa da estafada e genérica menção a «outros países europeus» (argumento bem pouco nacional!) e por causa da importância de atender às necessidades das elites e à imposição da «identidade nacional» às massas.

O artigo trouxe-me à memória o trabalho de grupo que me foi proposto no final do Curso do IDN: relacionar a segurança nacional com o sindicalismo. O objectivo era claro: apesar de se aceitar o sindicalismo em democracia (o general também aceita os canais privados por causa da democracia), pretendia-se que aquele grupo de auditores tirasse a conclusão «lógica»: o sindicalismo poderia ser perigoso para a segurança nacional. Recordo que o Muro de Berlim e a URSS não eram ainda para o PCP e a CGTP apenas a saudade que são hoje.

O meu grupo apresentou um trabalho considerado escandaloso dos pontos de vista formal e de conteúdo: em apenas duas frases dizíamos que sendo o sindicalismo a expressão livre e democrática de interesses de portugueses, não encontrávamos a mínima relação entre os dois temas propostos.

A argumentação do general forneceu alimento ideológico a gente que se apresenta de «esquerda» como Vasconcelos, Carrilho e ainda para Arons de Carvalho, o grande obreiro da RTP actual, toda ela «segurança nacional» de cima a baixo. O artigo do general foi agitado nos comícios do novo PREC. Quem havia de dizer!

Os interesses do Estado são colocados acima dos interesses da nação. A segurança é colocada acima da liberdade. E, como sempre, o argumento serve para colocar os direitos das elites acima dos direitos das «massas».

Porque o general pode ler Sun Tzu, Maquiavel, Clausewitz e Napoleão - estrangeiros! - que a sua mente não será perturbada na defesa da segurança nacional. Porque Carrilho pode folhear as várias edições do Larousse à procura de formas de divulgação da filosofia que a sua mente nacional não será perturbada. Porque o grande Truffaut português pode ver as fitas estrangeiras que lhe apetece que a sua filmografia, ao invés de ficar manchada por nefastas influências estrangeiras, será sempre imaculadamente «novo cinema» português. Todos podem aceder à cultura estrangeira onde quer que seja, apenas quando alguém faz tremer o modelo caquético da nossa TV pública se lembram de arrasar o bei de Tunes.

Para eles, o povo é ignaro, as TV privadas são vende-pátrias e colocarão em perigo a segurança nacional. Aconteceu isso às Publicações D. Quixote, agora espanholas? Aconteceu isso à Columbia, agora da Sony? Aconteceu isso à TVI, por causa dos seus capitais estrangeiros? O povo é estúpido e irá atrás da primeira notícia de «influência» estrangeira que apareça nos telejornais privados. Para estas pessoas, o mercado em liberdade não funciona a favor do que a maioria dos nacionais - naturalmente patriotas - pretende ver e ouvir. Nem a liberdade e a democracia serão suficientes para que as «massas» entendam eventual ludíbrio. Só eles, os das elites, são inteligentes e topam tudo.

Para o general, Carrilho ou o grande Truffaut português tem de haver dois canais por causa da segurança nacional. Não se percebe porque não deveriam ser três como em «outros países europeus» ou quatro, como «em outros países europeus», ou apenas um, como em «outros países europeus». Há modelos europeus melhores que outros.

É claro que a argumentação «europeia» tem brechas, dado que os modelos europeus começam a ser muitos: já há, por isso, para Carrilho, países europeus «bons» e «maus». Entre os bons está a TVE (escandalosa na programação e nos gastos), que eles e Vasconcelos agitam como maravilhoso exemplo de serviço público feito pela direita arrependida.

O que está subjacente é simples: o canal das elites pode ter muitos programas estrangeiros, filmes, música clássica, ópera, etc. É, aliás, o canal «estrangeiro» por excelência no seu modelo público. Mas, como é para as minorias iluminadas, não faz mal ser estrangeirado. O outro canal, como é para o povo estúpido e insensível à segurança nacional, preenche-se com programas nacionais que as elites abominam mas desenham e produzem dentro dos seus padrões de «programação popular de qualidade».

Não quero concluir que um canal é melhor que dois - já escrevi sobre isso. Mas aconselhava a pseudo-esquerda que temos (e nela incluo o Bloco de Esquerda, que deu aqui uma volta de 180 graus para aproveitar as «photo opportunities» do circo à porta da RTP) a apresentar o seu argumento com verdade: digam apenas que querem um canal para si mesmos e outro para entreter superiormente o povo estúpido. E ao senhor general Loureiro dos Santos eu pedia-lhe que acreditasse mais na inteligência e no patriotismo do povo e nas virtudes da liberdade. Já cá estamos há 800 anos e não me consta que tenha havido sempre dois canais de televisão do Estado.