Eduardo Cintra Torres

O Modelo Ping-pong de Serviço Público Está Esgotado


Os defensores do "status quo" da organização actual do serviço de TV do Estado afirmam que se deve seguir o "modelo europeu" baseado em dois canais, um para as massas (ou grande público, ou público), outro para as elites (ou públicos, minorias).

A argumentação é muito de futuro e muito europeia, o que logo traz lágrimas de alegria aos olhos - como das outras 50 vezes que foi prometida. Mas...

Em primeiro lugar, ignora-se que a organização da TV do Estado segue modelos europeus desde a sua fundação por Salazar e Caetano. A RTP do Estado com intervenção governamental não foi inventada nem pelo regime fascista nem pelo regime democrático. Foi inventada em simultâneo pela Europa toda. O modelo RTP é um modelo europeu. Se na prática já não funciona, há que admitir a hipótese de que não se ajusta ao país e à sua democracia. Há que procurar outros, ou inventá-lo.

Em segundo lugar, a argumentação do "status quo" ilude-nos com a ideia de "um modelo europeu". Há vários modelos europeus. Cada país adaptou a organização da TV do Estado à sua maneira. Em Portugal sempre se sonhou com o modelo BBC (jamais alcançado na programação, só atingido no mesmo crescimento dinossáurico e despesista), mas sempre se aplicaram modelos semelhantes aos dos países latinos, nomeadamente francês e espanhol. Convinha, pois, que os defensores do "modelo europeu" concretizassem qual dos modelos europeus pretenderiam seguir se fossem Governo.

A defesa do "status quo" passa primordialmente pela defesa dos dois canais da RTP no seu modelo já existente, fingindo que pode reformar-se. A argumentação pretende que a TV do Estado deve ser auto-suficiente para a audiência, isto é: o espectador ora vê um dos canais do Estado, ora vê o outro; quando não lhe agrada o das massas, salta para o das elites; e vice-versa. Trata-se daquilo a que chamo o modelo ping-pong, um delírio imaginativo que vê a população a mudar do 1 para o 2 e do 2 para 1 como se ainda estivéssemos em 1968, quando foi lançada a RTP2, ou em 1993, antes de começar a TV privada. Ou antes de o mundo ter mudado, como o faz a toda a hora.

Para além de esta argumentação servir exactamente os interesses dos próprios proponentes (intelectuais de elite mas com gosto pelo futebol, novela, etc) e não os dos outros portugueses, verifica-se que o modelo ping-pong, além de já existir (RTP1 e 2), ignora as profundas mudanças que se deram em todos nós nas últimas décadas. Tornámo-nos membros permanentes de audiências efémeras, difusas; mudamos de canal com total facilidade, fazemos parte em simultâneo de várias audiências (lê-se jornal enquanto se ouve CD e se espreita a TV) e cada vez temos mais alternativas à TV: as audiências da TV estão a baixar, incluindo as da generalista, aumentam as do cabo, bem como tudo o que não é TV: rádio, PC, internet, música, leitura, DVD, consolas, tempos livres fora de casa.

A mudança de todos como audiências obriga os "media" a adaptarem-se. É o que fazem em permanência, para não morrerem, os "media privados", sejam jornais, rádios ou televisões. Só o modelo da TV do Estado não se adaptou à mudança da sociedade, de nós todos. Tornou-se obsoleta mais depressa do que as congéneres de outros países europeus (lá chegarão).

O modelo ping-pong RTP1-2 já foi "reformado" sem êxito por muitas dezenas de direcções de programas e administrações da empresa. Está falido e seria mais interessante que as partes interessadas procurassem dar pontos de vista construtivos nesta fase, introduzindo ideias num modelo que irá fatalmente ser aplicado, conforme referia Manuel Villaverde Cabral na sua crónica de sexta-feira no "DN".

O modelo ping-pong chega sempre a um beco sem saída: nunca saberemos como se atinge no canal de massas um nível mágico audimétrico que os seus defensores agitam (20 por cento de "share") sem ser com Jorge Gabriel, Serenella Andrade e João Baião. Não saberemos porque os defendensores do modelo ping-pong sabem que só com Baião e Isabel Angelino se atinge os "seus" 20 por cento ou então sabem que sem os Baiões, "elevando o nível" da programação popular, o canal de massas deixa de ser... popular. Torna-se impossível ter os miríficos 20 por cento. O canal de massas deixa de ser de massas, e passa a ter a mesma audiência do canal de elites. Não esqueçamos que a RTP2 já chegou a ter, pontualmente, valores acima da RTP1.

A consequência disto é que se o canal de massas tivesse mais qualidade os dois aproximavam-se em audiência.

Nesse sentido, o modelo actual, mesmo afinado para ter mais qualidade e ser menos despesista (o que me parece impossível dentro do seu quadro empresarial actual) termina num beco sem saída ao fim de 34 anos.

O Estado decidiu há anos, com aprovação hoje geral, que houvesse canais privados para fazer programação popular. A conclusão evidente desse acto primordial da abertura da TV privada é que não é necessário o Estado fazer programação desse tipo. É hoje um absurdo total que o Estado mande fazer programas tipo Baião ou Gabriel. Porque raio há-de o Estado preocupar-se com esse tipo de coisas? Porquê? Não há um único defensor do modelo ping-pong que consiga conciliar o nivel de "share" que deseja com outro tipo de programas que não sejam os Baiões.

É por isso que o modelo ping-pong de TV do Estado não só está desactualizado como é reaccionário: quer que o Estado faça com o dinheiro do público programação sem qualidade, o que já não lhe compete.

Daí que a existência de um só canal de programação seja mais profícua em termos de qualidade que a soma dos dois actuais ou futuros do modelo ping-pong; daí, enfim, que valha a pena discutir seriamente o futuro que o Estado pode dar ao seu outro canal para bem da cidadania, da sociedade civil e do serviço público. É isso que tenho defendido: um modelo completamente novo, gerido pelo Estado, de programação arco-íris, com uma forte abertura à sociedade civil. Seria uma forma de o Estado manter os dois canais, promovendo a TV tradicional num dos canais, mas com qualidade, e promovendo a participação cívica da sociedade pelo método que, numa democracia tão incipiente e avessa à associação como é a nossa, mais fácil e rapidamente a permite fazer: através dos "media", num mundo em que, repito, todos somos membros de múltiplas audiências da manhã até à noite e só vemos na TV o que nos interessa, não o mesmo ping-pong obrigatório que nos oferecia o Estado de há 20 ou 30 anos.