Eduardo Cintra Torres

Os Argumentos do Costume


Está montado o circo do PREC à porta da RTP em Lisboa. No asfalto da 5 de Outubro caem, de alguns oportunistas e aproveitadores do dinheiro público, muitas lágrimas de crocodilo; pelas pedras da calçada transformadas em pano de estúdio passam, desde que as câmaras estejam ligadas, muitos defensores emocionados da mediocridade televisiva em que participaram e pretendem continuar a participar; com bandeirolas e autocolantes no peito choram alguns que se designam "trabalhadores" e que, de cada vez que o fazem, obrigam os restos mortais de Karl Marx a dar uma volta no caixão no cemitério londrino de Highgate.

Circo é circo, mas a capacidade organizadora de plenários da actual direcção-geral, aliada aos interesses que a política anunciada pelo Governo põe em causa, pode ser suficiente para criar um cambalacho político difícil de resolver. Os interesses instalados vão usar todas as armas em que são exímios: propaganda, argumentos absurdos que colhem, em parte da opinião pública, apelos de "personalidades" à desobediência civil e em simultâneo à intervenção do Presidente da República.

O circo começou no pseudo-debate que Judite de Sousa se prestou a orquestrar na terça-feira, revelando a natureza do que chamo a Nova Propaganda, aquela em que o pluralismo serve para adocicar a pílula da mensagem preferencial imposta à audiência (que carta terá Mariana escrito desta vez a Judite?).

É próprio dos períodos revolucionários que as propagandas se revelem em todo o seu esplendor, e esta contra-revolução em defesa dos interesses dos parasitas estabelecidos na carcaça do dinossauro RTP tem sido pródiga em mostrar a inconsistência de alguns velhos argumentos.

Um deles é a questão do financiamento. "Simples", dizem os indignados de hoje que nunca se indignaram com o "forrobodó" de sempre. "Basta resolver o financiamento da RTP para tudo ficar resolvido. O mal foi acabarem com a taxa! Com ela, tudo estaria bem! Veja-se o caso da RDP, a taxa é cobrada e não há problema, a RDP até dá 'lucro'!"

Eis o despudor com que se pretende usurpar o dinheiro dos contribuintes. De facto, a abolição da taxa da RTP é irrelevante se o Estado tiver processos transparentes de financiar os seus serviços, sejam eles quais forem. A taxa da RDP é tudo menos transparente, pois está mascarada na conta da electricidade, o que é de duvidosa lealdade democrática e de cidadania. É uma taxa universal e igual para todos, independentemente dos seus recursos e da utilização dos serviços.

Além disso, o cerne da questão não é a forma do financiamento, mas o financiamento em si. O que conta é que, tal como a RTP, a RDP recebe dinheiro a mais, muito dinheiro a mais, para os serviços que presta. A RDP também tem muita gente a mais em relação aos serviços que presta, alguns dos serviços que presta não são serviço público, e os seus recursos exagerados estão sujeitos à arbitrariedade, como o milhão e meio de contos gastos na rede digital DAB que o futuro tornará inútil antes de servir para alguma coisa.

Algumas pessoas defendem, até abertamente, que o processo de obter o financiamento da RDP é excelente porque se engana as pessoas e elas não dão por isso. E o mais estranho é que essa defesa do desbaratar de impostos cobrados ao engano é feita principalmente por quem mais se esperaria que tivesse em atenção os interesses do povo.

O mesmo tipo de argumentação é o que consegue apresentar como exemplo bom para Portugal a pouca-vergonha da RTVE espanhola e a péssima conduta do Governo do PP de Aznar: o déficit da RTVE é descomunal, a despesa que os espanhóis fazem com aquela empresa é impressionante tendo em conta o péssimo serviço que presta.

Mas, como disse, os períodos revolucionários trazem a verdadeira natureza das pessoas à tona, e o caso RTP adquiriu contornos PREC susceptíveis de revelar todos os Mrs Hyde que há por trás dos simpáticos Drs. Jekylls que choram lágrimas de crocodilo.

O outro argumento interessante que se invoca é o das audiências: é preciso um canal generalista para "a maioria" e um para "as minorias". E chega-se a indicar valores de "share" para o que deve ser o canal generalista. As conversas que tenho mantido nas últimas semanas e o que tenho lido e ouvido em torno do tema mostram o enorme desconhecimento do que são as audiências (confundidas com a sua medição pela audimetria) e do que são as audiências actuais nos países desenvolvidos.

Hoje, as audiências somos nós todos e somo-lo a todo o instante, seja de TV, de rádio, de música, de imprensa ou de espectáculos. As audiências são difusas, fragmentadas, divididas, e têm um poder acrescido de escolha e de construção do "dia mediático". Não há nenhuma audiência expressiva de um único canal, pelo que não faz sentido construir uma programação que tenha uma coerência de uma audiência que não existe, o tal famigerado "grande público". Hoje, os espectadores são - para usar a expressão daquele argumento - esquizofrénicos, no sentido de que escolhem aqui e ali o que muito bem entendem para construir o seu canal, um canal de um único espectador, eles mesmos.

Por isso, não faz sentido definir programações de serviço público "de maiorias" e "de minorias", isto é, em função das audiências. Nenhum membro de "maioria" ou de "minoria" verá um canal desses. Verá, isso sim, partes, bocados, fragmentos desses canais. E, assim, faz muito sentido programar em fragmentos como propus várias vezes num segundo canal público porque cada segmento se destina a uma audiência interessada.

O que acontece, porém, é que muitas das pessoas com quem tenho falado não querem saber para nada das audiências específicas dos programas ou canais, isto é, das pessoas concretas, os seus concidadãos. A argumentação feita dos canais para "maiorias" e "minorias" esconde outra que dificilmente o leitor ouvirá mas que lhe garanto que existe: "OK, damos de barato que tem de haver um canal para o povão e com futebol (que a gente também quer ver), mas tem de haver outro canal para nós vermos... e fazermos."

A arquitectura belíssima dos dois canais - um para "maiorias" outro para "minorias" - esconde os interesses de pessoas em fazerem elas programas para si mesmas. A insensibilidade que encontrei para com a ideia de adequar a programação a audiências concretas da sociedade civil foi para mim sinónimo de um horrível desprezo: há intelectuais, e principalmente de esquerda, alguns deles muito vocais neste período, que se estão nas tintas para as audiências e para a sociedade civil. O que querem é ser eles a fazer a televisão de serviço público, chame-se RTP ou outra coisa.

É claro que o circo está montado na 5 de Outubro também pelo facto de a estratégia do Governo não só não ser totalmente clara como ainda não ter sido apresentada de uma só vez. Não se sabe o que o Governo pretende fazer com um dos canais públicos (e se ainda não sabe deveria dizer que ainda não sabe, e que quer começar por um a reforma do serviço público); o próprio destino da RTP enquanto empresa foi, nas palavras públicas de Morais Sarmento, na quinta-feira, a extinção e sua substituição por nova empresa, mas já na sexta-feira, entrevistado pelo Grande Júri da TSF, o mesmo ministro disse exactamente o contrário. Esta indefinição alimenta o circo do PREC.