Eduardo Cintra Torres

Sob o Manto Diáfano da Nudez


Numa época em que a nudez está tão banalizada no cinema, na TV e na imprensa, e de dia nas praias e de noite na "noite", numa época em que os costumes supostamente se libertaram, pode ainda chocar o corpo nu?

Claro. O espírito mantém-se tão prisioneiro de mitos como o corpo prisioneiro dos trapos que o tapam. Fora dos contextos em que é aceite no presente, a nudez choca.

Na mesma semana em que a SIC Radical estreou Nutícias, apontamento em que a apresentadora Paula Coelho faz strip-tease enquanto lê notícias, o "Expresso" dava corpo a uma nudez anunciada desde o sábado anterior: uma dúzia de "conhecidos" das artes e política revelam parte da pele natural ao fotógrafo Rui Ochôa.

Por coincidência, as manifestações populares de júbilo pela vitória do Sporting Club de Portugal no Campeonato (RTP1, SIC Notícias, revelando ambos os canais bastante agilidade) acrescentaram na mesma semana uma nova forma de nudez aos nossos "media": no alto do monumento ao Marquês de Pombal, fálico como convém aos monumentos, um sportinguista despiu-se para a multidão e para as câmaras.

O fã feliz mais não fez do que levar até ao limite o sentido que tem uma multidão destas: mostrar-se. A festa de rua do Sporting, que começou espontaneamente e depois se multiplicou com a ajuda dos "media" (rádio, TV), pareceu tirada dos manuais sobre as multidões: encheu as ruas de repente, sempre a crescer e, sendo uma multidão positiva, foi pacífica. A multidão não cabe em si; o fã do Marquês levou isso ao extremo de não caber dentro das roupas.

A TV serviu à multidão como espelho: para ela se ver a si mesma, ver o seu poder e a sua alegria - a mais simples das alegrias, a de se «ser» do clube que ganhou, ou melhor, a alegria de se ser quem ganhou. A multidão estava feliz consigo mesma, o clube foi só o instrumento dessa auto-estima. A nudez do fã leva ao limite o exibicionismo da multidão.

Já a nudez das Nutícias da SIC Radical é uma ferramenta adicional do entretenimento que caracteriza o canal. A novidade está em que o programa cria uma dislexia a cem por cento entre o que se vê e o que se ouve; entre o "conteúdo" das notícias e o "conteúdo" da apresentadora propriamente dita.

Apesar do registo de entretém, inúmeras vozes se levantaram para denunciar a ousadia da SIC Radical - decerto as mesmas vozes que acham imensa graça a outros entretenimentos (como o contra-Informação e "sketches" de dezenas de séries cómicas em todo o mundo) em que também a forma do jornalismo e os factos reais são gozados.

Os ataques às Nutícias da SIC Radical confirmam como o "sketch" é verdadeiramente subversivo da comunicação televisiva, desmascarando o que está por baixo de tanta coisa que nos é mostrada como informação.

As Nutícias chocam porque mostram a TV como ela é: uma espiral de comunicação que se consuma em si mesma. O que a televisão tem para nos comunicar é a comunicação, como o fantástico baladeiro que Raul Solnado criou no Zip-Zip há 30 anos: "eu canto para comunicar", dizia ele. "Comunicar o quê?" Ao que o baladeiro respondia: "Comunicar a comunicação."

As notícias, as autênticas, também são pretexto para a TV se comunicar a si mesma, seja nos telejornais sérios, seja no strip-tease da SIC Radical. Nos telejornais, as notícias prolongam-se e directos inúteis enquanto informação sucedem-se, não para informar mas para manter emocionado o acto de comunicar - o quê não interessa: pode ser a simples chegada de pessoas a um jantar (RTP1, 29.04). Os noticiários deixam de fora, cada vez mais, as notícias que televisivamente não "comunicam".

Se nos noticiários sérios a notícia é cada vez mais vezes um acessório da comunicação, por que razão não haveria um programa radical de se aproveitar da superficialidade e da espectacularidade dos noticiários - usando a "carne" dos próprios telejornais, isto é, as notícias? É o que fazem as Nutícias. Que a coisa é foleira, é, mas que a superficialidade e espectacularidade da informação televisiva haveriam de motivar um tratamento destes, também é verdade.

Porque o que conta não é a nudez, tal como não são as notícias. O espectador está farto de conhecer uma e outras. O que conta para o espectador é a subversão do artificialismo da comunicação pela comunicação. O espectador sabe que, em vez de comunicar, a TV "esgota-se na encenação da comunicação", nas palavras de Jena Baudrillard. O que conta nas Nutícias é gozar-se com o que o espectador sabe intimamente ser uma construção, os telejornais sérios.

Há também um lado de construção no portfolio do "Expresso" intitulado "Ensaios sobre a nudez" (27.04). Se nas Nutícias o choque é a junção de "notícias sérias" com o strip da apresentadora, nestes Ensaios busca-se a sensação pelo anúncio da nudez de pessoas que normalmente não a praticariam publicamente. Na verdade, as fotografias enganam, pois não há ali verdadeira nudez. A pudica exibição do corpo encerra menos mostrança do que muitas fotos de pessoas vestidas dos pés à cabeça. Interessava simular a nudez do corpo. E nessa simulação simulou-se também a personalidade. Pretendeu-se "aparecer", com o pretexto limite do corpo, mas fingindo mostrá-lo ou mostrar-se.

Os 12 convidados mostraram menos do que eventualmente mostrariam na praia. Por exemplo, Maria Elisa Domingues tapou-se com um vestido, Xana Nunes com um tule, Pedrito de Portugal com um capote, Ana Bustorff com um grande plano, Isabel do Carmo com um cortinado, Pedro Norton de Matos com a escuridão e Fernando Negrão, numa foto absurda no contexto do portfolio, aparece de fato de banho na piscina. O que conta não é o como, é só o aparecer.

A noção de nudez que atravessa estas imagens exclui não só a sexualidade e o erotismo como, paradoxalmente, o corpo e a própria personalidade. Das 12, só a fotografia de Clara Pinto Correia se aproxima dum autêntico retrato, tendo sentido que a nudez se escondesse com um monte de livros, incluindo o seu próprio "O Ovário de Eva".

Esta nudez dos "12 portugueses" tapa muita pudicícia, mas principalmente mostra alguma hipocrisia de uma sociedade que se afirma moderna (mostramos a nudez!) mas continua com os mesmos atavismos (não mostram a nudez). Entre a jornalista Maria Elisa que, vestida, faz capa do "Expresso" sobre a nudez, e a Paula Coelho não-jornalista que se despe a ler notícias na SIC Radical passa um fino manto diáfano em que a nudez é mais um adereço do espectáculo da comunicação comunicando-se.