Eduardo
Cintra Torres
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O Fim de Um Ciclo |
A teoria inventada por Dominique Wolton e fielmente seguida pelos defensores do actual modelo da RTP, como Arons de Carvalho, resume-se assim: o Estado tem de chegar ao maior número de pessoas com as suas mensagens político-ideológicas, e isso hoje só se consegue via TV; como canais de qualidade no universo concorrencial não chegam a muita gente, o Estado tem de fazer um canal generalista com concursos, novelas e "talk shows" e colocá-los em volta de telejornais com as suas mensagens. Numa recente conferência em Lisboa, organizada pelo CIMJ, Wolton teve um genial "lapsus linguae" freudiano: ao elencar esses programas que o Estado deve fornecer ao povo (concursos, etc.), ele acrescentou "circo". É precisamente isso. Foi para cumprir este projecto que o Governo anterior contratou Rangel. Socialista, empreendedor, bem relacionado com os grupos mais ou menos abertos existentes no PS, criando amizades com pessoas influentes através de tempos de antena pessoais na SIC (Coelho, Sócrates), com a aura de criador a partir do nada (TSF, SIC), Rangel pareceu a Sócrates, Guterres e Arons a pessoa certa para, como noutras áreas da governação, esconder o sol com a peneira, iludindo a falência da RTP com uma programação "popular de qualidade". O azar de Rangel foi chegar à RTP no fim de um ciclo. Um ciclo interminável, voraz espiral de dinheiros. Rangel chega à RTP sem poder aplicar o seu menu criativo (TSF e SIC, primeiras partes), mas apenas o seu menu destrutivo (TSF e SIC, segundas partes). A estratégia caiu no inevitável: o modelo woltoniano-aronsiano; e a sua actuação tornou-se semelhante às anteriores na RTP: criou uma claque de incondicionais para conseguir pôr programações no ar e assume o discurso do "vestir a camisola", como fez Armando Vara. Rangel está sozinho na RTP, sozinho com o grupo que levou da SIC. A RTP não está com Rangel não só porque a RTP, sendo como é, nunca está com os seus chefes, mas também porque Rangel se comporta como chefe de um grupo de comandos em luta na savana contra os "turras". A estratégia seguida na programação é a desejada pelo anterior Governo: desenvolver a faceta comercial e popularucha (Fábrica das Anedotas, Camilo) e a qualquer preço para embrulhar os programas de informação. Rangel procura fazer na RTP o que já fez na SIC: primeiro porque acha que resulta para consolidar audiências (não resultou até agora); segundo porque, por obstinação que se assemelha a paranóia, pretende "roubar" trunfos à SIC. Para isso, trouxe da SIC incondicionais que funcionam em grupo emocional fechado sob uma liderança absoluta e incontestada - confundindo-se carisma com arbitrariedade -, modelo de trabalho que em tudo se afasta do profissionalismo moderno e da saudável gestão de recursos humanos nas verdadeiras empresas. Além disso, a perseguição pessoal à SIC, que todos os portugueses estão a pagar com os seus impostos, reflecte-se na forma como reproduz na RTP conceitos que tinha desenvolvido na SIC: - telejornal-supermercado, com as suas várias bancadas e prateleiras, "product placements", néons publicitários e apresentadores em poses tipo "TV shop"; - informação descambando para o entretenimento, como o Gregos e Troianos de modelo fascizante (incute no espectador que é à pancada que se impõem as ideias) ou a jornalista Alberta Marques Fernandes falando para o boneco do Contra-Informação; - a miserável Fábrica de Anedotas em contraponto aos Malucos do Riso e o Camilo da RTP a recordar o Camilo da SIC; - telenovela brasileira (a milhões de anos-luz das da Globo); - Operação Triunfo em espanhol, "cocktail" de Chuva de Estrelas da SIC com "reality show" da TVI - programa de "beautiful people" com os mesmos apresentadores do defunto Mundo VIP da SIC, Felipa Garnel e Paulo Pires; - programa com João Baião que recupera o Big Show SIC; - contratação de Júlia Pinheiro, identificada com programas-chave da SIC; - debate dos delfins do bloco central, Sócrates e Santana Lopes, modelo SIC. Neste caso, trata-se de manter relações pessoais com políticos influentes e de futuro nos respectivos partidos, abrindo assim canais de influência. Rangel mantém o insalubre conceito de transformar em comentador um político com funções de Estado; se na SIC era Sócrates que não devia estar por ser ministro, agora é Santana Lopes que está a mais, pois o seu lugar de presidente da Câmara de Lisboa é equivalente a ministro e tinha obrigatoriamente de rejeitar o papel de comentador. A defesa esfarrapada da RTP que Santana Lopes fez no domingo 21 de Abril foi uma triste prova de promiscuidade a que um presidente do município da capital deveria estar imune. O modelo SIC na RTP não está apenas errado por ser um modelo comercial numa estação supostamente de serviço público. Também está mal pelo facto de estar ultrapassado na própria lógica de quem o desejava: se os programas que agora saem da arca de Rangel acabaram sem audiências na SIC, por quê acreditar que as atrairão agora? A este duplo erro de estratégia somam-se ataques deliberados ao que resta de serviço público, como a mudança de horário do Regiões, substituindo-o por um concurso, a tentativa de acabar com o programa das confissões religiosas Fé dos Homens, a transmissão da missa de Páscoa em diferido (pela primeira vez em 45 anos) ou o ataque despeitado de Rangel ao Conselho de Opinião que, bem ou mal, é uma instituição representativa aceite por todas as instituições, a começar pelos partidos parlamentares. A programação da RTP1, feita com tremendos ziguezagues, alguns resultando das dificuldades da empresa, outros da incompetência dos colaboradores escolhidos por Rangel, acentuou o lado popularucho que vinha de trás. A RTP1 de Rangel é um absurdo total: um absurdo porque não é serviço público; um absurdo porque mesmo comercialmente não consegue competir com os privados, nomeadamente com a actual "némesis" de Rangel, a SIC. A programação da RTP1 não passa de um mau canal comercial feito com dinheiro público, com demasiado dinheiro dos contribuintes para os resultados obtidos. Não serve o público, serve-se do público. Traçado este quadro a frio, verifica-se que Rangel faz parte do fim do ciclo da televisão comercial do Estado falsamente de serviço público. Ele faz parte do problema e não da solução. |