Eduardo Cintra Torres

Centenários


Uma das mais importantes funções oficiais de um monarca durante toda a sua vida é, ironicamente, morrer: a sua morte permite aos concidadãos viverem a monarquia e renascerem para ela.

A morte da rainha-mãe Elizabeth permitiu mais uma celebração formal da monarquia inglesa. Fechava-se aos 101 anos de idade a máscara de sorriso que foi suficiente para adornar os "media" e promover a monarquia durante dezenas de anos. O protocolo real, que é em si mesmo metade da monarquia, tomou conta de muitos "media" e, em sintonia com as emoções, tomou conta de muitas pessoas.

Os dez dias cerimoniais (mais dos que os reservados à "dissidente" Diana) incluíram um fim-de-semana propiciatório à formação das multidões junto dos lugares simbólicos da monarquia; as exéquias em Westminster seguiram, passo a passo, o protocolo dos acontecimentos mediáticos descritos por Daniel Dayan e Elihu Katz ("A História em Directo", Coimbra, Minerva, 2000). A cerimónia na abadia foi perfeita - e curta, como convém em tempos em que os "media", como as pessoas, andam a correr.

A transmissão da BBC parecia saída do livro de estilo de como celebrar o poder. As imagens históricas fizeram o mesmo que na URSS com Trotsky: a BBC não mostrou Diana com a rainha-mãe. Curiosamente, a BBC tinha sido criticada anteriormente por causa de uma gravata de um apresentador, bem como de perguntas que ele fez, muito a medo, a uma parente da falecida. Ora, a gravata não era preta porque o protocolo assim o indicava (o luto da Sky e de outros órgãos de informação foi mediático-emocional, não protocolar). Já quanto às perguntas do embaraçado jornalista, é óbvio que ele procurava através delas ser jornalista... mas não da televisão do poder, que é o que a BBC também é.

Na abadia, a BBC recuperou a compostura de Estado. A estratégia da BBC foi mostrar a cerimónia quase sem comentários ou explicações, estratégia óbvia porquanto a sua narrativa e compreensão ideológica são por completo auto-evidentes. Não há, nestas exéquias, nada fora do lugar, nada fora do tempo e nada fora do círculo concêntrico formado em volta do núcleo do acontecimento, a rainha morta. As "três unidades" da tragédia, que os autores franceses do século XVII erigiram em cânone - de tempo, de lugar e de tema - dominam a narrativa. Foi notável uma das distinções que separam o acontecimento mediático de tantos milhares de horas televisivas: o facto vital de estas narrativas serem essencialmente visuais. Por isso, pôde a RTP2, via Euronews, transmitir a cerimónia mantendo a integralidade do som original, sem comentários. Via-se e entendia-se tudo.

Já a SIC Notícias escolheu a estratégia do relato radiofónico do futebol, sofrendo de uma incontinência verbal que prejudicou a apreensão da cerimónia. Com o horror ao silêncio que caracteriza a TV portuguesa nestas ocasiões - negando ao silêncio o seu avassalador poder comunicativo - o jornalista João Adelino Faria manteve a emissão sem um segundo de silêncio.

A estratégia palavrosa, e cansativa, da SIC Notícias não serviu para dar conteúdo jornalístico. Se o critério fosse esse não valeria a pena concentrar várias horas de emissão num funeral de um parente dum chefe de Estado estrangeiro.

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Três importantíssimas qualidades caracterizam Fernando Pessa: a honestidade, a simplicidade e a longevidade. A sua vida, que agora chega ao centenário, fica indissoluvelmente ligada à história da rádio e da televisão portuguesas.

Um dos primeiros repórteres da rádio nos anos 30, Pessa caracterizou-se-se pela naturalidade e loquacidade dos directos. Mas foi depois, em Londres, na BBC, que ganhou uma notoriedade invulgar no país. As emissões da BBC em português tinham uma audiência incrivelmente alta entre nós, registada em centenas de entrevistas, em memórias e testemunhos e na literatura portuguesa da época. Pessa foi o nosso primeiro mensageiro a sobrepor-se à mensagem, criando pela primeira vez a categoria da estrela mediática.

Pessa distinguiu-se por ter usado a locução para contrariar a suposta neutralidade da emissora britânica: ao aspirar o "H" e rolar o "R" de "sr. Hitler", ele marcava a informação que lia com uma ironia que era "do contra". Nos anos 60, na minha família, ainda se recordava com humor e simpatia este "o senhor... Hhitlerr", criado por Pessa na BBC. Este detalhe singelo tinha um valor enorme, num país dirigido por um governo de duvidosa neutralidade e de nada duvidosa repressão das liberdades. Uma simples inflexão na voz... e Fernando Pessa exprimia-se livremente sobre Hitler.

Os portugueses entenderam-no muito bem - e o regime também. Regressando a Lisboa quase como um herói de guerra, Pessa não entrou para os quadros da Emissora Nacional. O mesmo sucederia na RTP, ele que foi o seu primeiro apresentador, no primeiro dia, como recordou na entrevista a Adelino Gomes na PÚBLICA (07-04).

Simples e honesto, Pessa tinha dificuldade em que as instituições de Estado, como a Emissora Nacional e a RTP, gostassem dele. Apesar da sua relação de trabalho antiga com a TV estatal, só a ferros entrou no quadro de uma empresa em que o forrobodó dos "boys & girls" sempre foi grande. Depois, por imperativo legal, veio a reforma que ele não queria e continuou a trabalhar a "recibo verde". É triste que a empresa que agora se pretende apropriar da sua imagem seja a mesma que por duas vezes, antes e depois de 1974, o tratou mal.

O seu trabalho de repórter televisivo foi, como ele, muito simples, jovial, e marcado pelo entretenimento, como o repetido "e esta, hein?" acentuava. Numa época em que o "trabalho de corredor" compensava, Pessa andava pela rua, como sempre fizera desde os anos 30 e tratava de temas desinteressantes para o poder, mas de interesse para a cidadania. Talvez por isso as empresas de "serviço público" o olhassem de esguelha. Algumas vezes, o tema das suas reportagens era tão simples e insignificante que o interesse da reportagem se reduzia à prestação do próprio Pessa, mas julgo que qualquer espectador aceitava esses momentos com a mesma naturalidade com que ele os fazia.

Profissional, simples, correcto, sem vergonha de defender os seus valores, um artista da forma jornalística dos "media" de massas, e bom carácter: sem nunca pronunciar as palavras ética e deontologia, Fernando Pessa é um exemplo de correcção profissional e de ligação directa aos cidadãos. Na vida e na profissão, foi oficial e cavalheiro: o oficial que sonhou ser na tropa e o cavalheiro que nunca lhe passou pela cabeça não ser. Que viva ainda os dez anos que deseja é também o que lhe desejo.