Eduardo Cintra Torres

O Jornalismo Profético


Nas últimas décadas acentuou-se uma prática jornalística fascinante: o jornalismo profético. Os jornalistas passaram a dedicar-se com uma frequência crescente ao anúncio do futuro, ou, o que é diferente e mais poderoso ainda, à previsão do futuro.

Anunciar o futuro parece ser, enquanto jornalismo, inócuo ou inofensivo, sem filiação. São aquelas notícias que anunciam que "o ministro inaugurará...", ou "os deputados votarão...". Na sua simplicidade, este tipo de matéria jornalística aproxima-se mais da notificação do que da notícia. Mas, uma coisa ou outra, são items informativos com objectivos raramente ingénuos. Há muito que se estudou a forma de o poder assumir a iniciativa mediática através da marcação da "agenda informativa".

Mas além desse jornalismo de notificação, existe o estádio superior do jornalismo profético, que é a previsão do futuro. Tornou-se uma actividade tão comum que é já difícil distingui-la do verdadeiro jornalismo. Prevêem-se desempenhos políticos, resultados eleitorais e desportivos, nomes de ministros, tendências económicas, relações internacionais - prevê-se tudo e apresenta-se isso como sendo jornalismo.

A tendência para o jornalismo profético escrito, de rádio ou TV, mas em especial nos dois primeiros meios de comunicação social, tornou-se avassaladora. Com o seu compromisso de mostrar imagens, a TV não pode "criar agenda" como o faz, gritantemente, a rádio; mas já se vê muita profecia televisiva acompanhada de imagens... de arquivo, isto é, do passado.

O que prevê tem poder. É assim há milhares de anos. A previsão do futuro faz parte da vida, da política, da literatura, das religiões e até da ciência. As sondagens são uma forma de profecia científica nas mãos de quem o jornalismo se entrega, arriscando com as previsões dos outros a sua própria credibilidade, como sucedeu ao "Expresso" na véspera das eleições autárquicas.

Todavia, o jornalismo original identificava-se menos com as tarefas previsionistas do que com o relato do passado próximo, incluindo aquele a que chamamos "presente". Por natureza, não se pode informar com fidelidade de factos que não ocorreram ainda. E muito menos se pode "informar" previsões. Por isso, escrevia Ortega y Gasset que "o ofício mais inútil do mundo é o de profeta".

O poder político tem uma especial apetência por incutir nos jornalistas a prática das notificações e das previsões proféticas. Isso convém-lhe. Enquanto se dedicam a dar "cachas" de inaugurações próximas, de aumentos de pensões lá mais para o fim do ano, e de brilhantes previsões do desempenho económico do país, os jornalistas deixam de ter tempo para averiguar a prática política que já existiu, a do passado, próximo.

Os poderes estabelecidos utilizam esta informação futurística em benefício próprio para insinuar na vida pública "factos" futuros, verdadeiros ou falsos, que interessam à esfera do poder, mas também para evitar que se fale do que o poder quer ocultar: a revelação de certos factos reais, já ocorridos. Na sua relação com o jornalismo, o poder tem horror ao passado. E as práticas vigentes indicam que há jornalistas que têm piedade do poder.

Os leitores do PÚBLICO puderam verificar o desagrado que o jornalismo nobre, de investigação (sobre o passado, portanto) provoca nos poderes instalados. Alguns trabalhos, nomeadamente do jornalista José António Cerejo - nunca desmentidos -, provocaram ataques pessoais descabelados por parte dos políticos e responsáveis cujas práticas foram reveladas. Este jornalista foi acusado de "perseguição", de monomania, etc. Os visados tentaram destruir a investigação séria insultando o jornalista. O jornalismo de investigação, ao tratar do passado, é perigoso. (Além de ser muito mais trabalhoso do que as notificações e previsões.)

Muitos poderosos abominam o jornalismo de investigação e preferem que os jornalistas anunciem o "futuro" que eles querem impingir aos cidadãos. As promessas dos poderosos não são uma prática exclusiva dos períodos eleitorais - pelo contrário, cada vez ocupam mais a intervenção dos políticos. Essas promessas são muitas vezes mascaradas de jornalismo profético, pelo que não parecem promessas, mas apenas "notícias" de acontecimentos que ainda não se deram. O semanário "O Independente" criou, por isso, uma secção chamada "O Cobrador de Promessas" onde o jornalismo profético (se calhar incluindo o do próprio jornal) é confrontado com notificações e previsões que não passaram, afinal, de mentiras com que se enganou, algures no passado, os portugueses.

Esta forma de entreter os jornalistas e a opinião pública foi desenvolvida ao limite, a um nível de extraordinário profissionalismo, pelos governos de António Guterres. Durante seis anos, vivemos no futuro. Viver no além é aliciante para a opinião pública e preferível a viver na triste realidade do presente.

A diferença nota-se: enquanto os governos de Guterres, prometendo futuro, conseguiram que o jornalismo os mantivesse no chamado "estado de graça" durante mais de quatro anos, o actual governo, antes de tomar posse, já estava "queimado" em diversos sectores fazedores de opinião e nem os cem dias habituais de "estado de graça" parece merecer. O jornalismo profético "nomeou" ministros e criou "expectativas"; depois, os ministros foram outros e os profetas disseram que o governo estava "abaixo das expectativas"... por eles mesmos criadas. O jornalismo profético desmente-se a si mesmo.

Aquele que prevê está numa posição favorável: "sabe" o que ninguém sabe. Daí que o jornalismo profético seja apresentado como uma "cacha"; na verdade, algumas manchetes previsionistas são propaganda na forma mais pura e perfeita que ela pode assumir numa democracia contemporânea.

Prever e anunciar o futuro é uma tentação. Todos gostaríamos de saber o futuro e, já agora, todos sonhamos com um futuro bom. Ninguém prevê perder a lotaria. Caso contrário, não jogaria. Mas não é uma previsão, é um sonho.

Julgo que os jornalistas - uma classe sempre tão criticada, mas que, ao contrário de outras tão mais "conceituadas" como os médicos ou os advogados, tem uma fantástica abertura à crítica e à autocrítica - deveriam debater este tema como uma questão técnica do jornalismo e verificar se é correcto continuar-se no sentido do jornalismo profético, ou se não será melhor para a actividade inverter-se essa tendência e iniciar-se um saudável e profissional regresso ao passado próximo e à investigação.