Eduardo Cintra Torres

O Elogio Fúnebre do Grande Público


A RTP entrou por fim no centro do debate político, e ainda bem. Todos os partidos tomaram posições, no geral construtivas e radicalmente opostas à realidade institucional, política e ideológica que prevalece. O PS, defensor até agora do modelo estatista e interventor na TV pública, teve de arrepiar caminho e chegou a defender a possibilidade de encerramento da RTP (em vez de seguir Arons, o PS deu razão ao Olho Vivo!). Mesmo que ninguém tenha acreditado que o PS alguma vez o viesse a fazer, foi significativo que, num documento importante como é um programa de governo, o PS tivesse aceite que uma empresa de Estado falida possa ser encerrada sem que isso seja o fim do serviço público que ela deveria prestar.

O caminho está assim aberto para que o próximo governo possa tomar medidas rápidas e drásticas, mas não é claro qual será para a coligação o conceito de "serviço público" do canal nacional que caberá à entidade dele encarregada (a RTP ou outra) transformar em programas. Não é claro porque nem os políticos, nem os académicos, nem os profissionais de TV, nem a sociedade em geral sabem muito bem o que deve apresentar um canal de TV da responsabilidade do Estado.

Deve ser generalista e popular para tentar chegar aos 20 por cento de "share", como defendeu o anterior ministro da tutela da RTP, Augusto Santos Silva, e outros teóricos do PS? Ou, no outro extremo, deve orientar-se para a vertente cultural? Haverá terceira via?

A questão é complexa. A TV parece ser, por natureza, vocacionada para atingir o maior número de pessoas: procura atingir a audiência máxima disponível à hora de emissão de cada programa; e a TV generalista é a que se adapta melhor ao conceito de máxima audiência, praticada pelos operadores nacionais privados e também pelos públicos; historicamente, a TV pública europeia foi generalista e cumpriu missões programáticas políticas, de Estado, como a "unificação" nacional, etc.

Esta argumentação foi explanada num livro que teve e tem ainda grande impacto em Portugal: "O Elogio do Grande Público", de Dominique Wolton (1990), editado pela ASA. O livro serve de bíblia aos defensores do modelo de serviço público tal como foi praticado pela RTP. Escrito aquando da chegada da TV privada à Europa, o livro defendia que era obrigação do Estado fazer TV generalista porque qualquer outra solução seria enviar o serviço público para o "ghetto" cultural.

A programação que Wolton defende passa por concursos, informação, desporto, etc., e pela sua arrumação numa grelha que é exactamente o conceito de "fluxo" que os estudos culturais britânicos criticaram na TV comercial. Para Wolton, podia dar-se-lhe a volta, mas entretanto passaram 12 anos.

A argumentação de Wolton, defendida neste livro até à exaustão (do leitor), representa para a TV pública um programa político e de Estado - ou não fosse ele um autor francês, sempre sob a influência das ideias da "grandeur française". Wolton parte do pressuposto que a TV generalista garante o "grande público" por si. Pressupõe que a fragmentação do "grande público" provocada por uma oferta que cresce incrivelmente, dentro e fora da televisão, dentro e fora de casa, pode ser contrariada por uma TV generalista de Estado para um "grande público".

Esta defesa da necessidade do "grande público" para a TV do Estado leva, em Portugal, à tal quantificação dos 20 por cento de "share" e à teorização da "programação popular de qualidade". Mais: a facilidade com que, para o Governo cessante, Emídio Rangel passou de inimigo da "boa televisão" a salvador do serviço público é o último cartucho dos defensores da teoria de Wolton. Aos olhos do Governo do PS, Rangel não só garantia a simpatia política (que para os governantes anteriores foi sempre considerada, em quem quer que fosse, como extremamente valiosa) como também tinha no currículo importantes qualidades para se tentar criar uma programação generalista do Estado para o "grande público".

Estas tentativas de aplicação dos princípios da TV generalista de Estado nos últimos seis anos provaram que, ao menos em Portugal, a teoria de Dominique Wolton falhou redondamente - porque uma empresa falida não está em condições de fazer bem o que quer que seja, porque estes princípios teóricos são inconsistentes com as tarefas que devem cometer ao Estado em concorrência com privados e porque uma programação para um mirífico "grande público" está necessariamente a reger-se pelo conceito de mercado e não de público.

A teoria de Wolton não resolve esta situação: o que fazer quando uma TV generalista não tem audiências de TV generalista? O que fazer quando a TV generalista que se dirige ao «grande público» é rejeitada pelo "grande público"? A RTP generalista da teoria de Wolton falhou.

Volta-se sempre à mais antiga questão de sempre, que é o silêncio da maioria, o silêncio desse tal "grande público": o que quer o "grande público" ver? Pretendendo-se fazer programas que "a priori" se julga agradarão ao "grande público", como é possível estabelecer um critério de "qualidade" para se chegar a uma "programação popular de qualidade"? Não é possível se se partir de um obscuro conhecimento dos desejos da maioria silenciosa.

Daí que a programação de um canal do Estado deva reger-se por princípios que não podem ser os das audiências - e isso é ainda o que se pretende quando se fala em "programação popular de qualidade" e em 20 por cento de "share" ideal. Para fazer isso aí estão os canais privados, não é preciso o do Estado fazê-lo. A este, se alguma coisa deve fazer, compete fornecer uma programação de acordo com parâmetros de qualidade intrínsecos aos próprios programas: critérios a que podemos chamar técnicos e que têm que ver com independência, interesse, construção, linguagem (no caso da informação) e de construção, linguagem, narrativa (ficção) e muitos outros que se aplicam a cada caso. Se esses programas têm ou não audiência "popular" não é coisa que se possa decidir à partida. Se tiverem, óptimo. Se não tiverem, paciência. Mas o que tem sentido é o Estado promover a criação de programação de qualidade (informação, debate, ficção, documentário, música, etc.) e não programação "popular" de qualidade fatalmente em concorrência de mercado com os outros operadores.

Em qualquer caso, nada é possível fazer com uma empresa falida. Neste momento, a RTP paga em juros de empréstimos à banca a escandalosa verba de oito milhões de contos. Eu vou repetir: oito milhões de contos do Estado são desbaratados anualmente para entregar à banca os erros de gestão e de política dos governos anteriores. Quantos centenas de horas de programas de qualidade não se fariam apenas com os juros que a RTP paga anualmente à banca!