Eduardo Cintra Torres

O Homem-Teatro e o Homem-Cinema


Como Almada Negreiros, António Pedro (1909-1966) foi um artista-espectáculo. Não admira que depois do seu documentário "SWK4" sobre Almada (1993), tenha sido Edgar Pêra a filmá-lo. Trata-se de "O Homem-Teatro", já mostrado em sessões públicas e a apresentar na RTP.

"Tenho talentos em quase tudo" mas "tenho-me dispersado", disse António Pedro, "in vino veritas". Esse quase tudo é teatro, pintura, poesia, ficção, crítica, comunicação na rádio e na TV: Pedro era um agitador. Atravessa a angústia da primeira metade do século XX como muitos: Paris, Londres e Rio de Janeiro abrem horizontes, mas, depois, o olhar do regressado faz da anterior Lisboa "pitoresca e caturra" um "aglomerado incaracterístico de provincianos desenraizados e sequiosos de emprego".

Em 1952, despediu-se da Lisboa-bafio com três manguitos à frente do Parque Mayer e refugiou-se na casa de família no altíssimo Minho. "De Moledo, descobri o Porto. Foi uma grande descoberta. O Porto é uma cidade de província que pertence à Europa."

Agarrado ao fio de Europa, fez-se no Teatro Experimental "o primeiro encenador português na acepção moderna do termo", como prefacia Fernando Matos Oliveira os "Escritos Sobre Teatro" de Pedro.

Esse momento vital em que, de Moledo, descobre o Porto, quer dizer, se concretiza plenamente artista-espectáculo e homem-teatro, é escolhido por Edgar Pêra para o longo plano de abertura de "O Homem-Teatro", espécie de prólogo à maneira do teatro do próprio Pedro.

Nesse plano, ele (representado por Nuno Melo) e a sua trupe avançam pela praia de Moledo em direcção ao pano de boca e entram pelo teatro (a câmara), enquanto se ouve com insistência a frase "era uma vez" e "o homem" e "o homem-teatro". Com este "era uma vez" anuncia Pêra a narrativa.

A partir daí, o pano de cena vermelho é um"Leitmotiv" enquadrando imagens do Porto, depoimentos e ficcionalizações diversas com actores, e inicia-se um processo elaboradíssimo de montagem estilhaçada, que Edgar Pêra tem vindo a desenvolver num percurso individual de grande originalidade.

Durante uma hora, os elementos visuais e sonoros são espartilhados até se reduzirem à célula: um ou dois segundos, repetição, uma, duas palavras, repetição. De um depoimento retira-se uma ideia, frase-chave, "slogan", "sound bit"e, quase que uma foto, um fotograma. Por exemplo, o depoimento em que se diz "O António Pedro enquanto não tinha um teatro não descansava" é repetido vários vezes e dele se destaca a expressão "não descansava", "não descansava". "Teatro é acção", escreveu Pedro. O homem-acção não descansava.

O processo fílmico de Pêra lembra o "paralelismo elementar" de Marcel Duchamp no "Nu descendant un escalier" (1912) em que o pintor quis, nas suas palavras, "criar uma imagem estática do movimento: o movimento é uma abstracção".

O movimento é feito no plano único desse quadro com a sobreposição da figura nas posições em que desce os degraus. A "decomposição formal" do movimento em "lâminas lineares" resultava da influência do cinema. Duchamp referenciou Jules-Étienne Marey, que disparava (literalmente) através duma carabina fotográfica uma sequência de imagens: a cronografia. O resultado mais conhecido é "O Homem que Anda" (1882).

Da mesma forma, decompondo micro-instantes dos movimentos, colagens, planos sobrepostos, Pêra cria também um "ralenti" através da velocidade violenta dos planos, colando-os em cascata como o nu descendo as escadas, resultando como que um desfolhar de "quadros".

O documentário de Pêra devolve o paralelismo elementar ao cinema. Em "lâminas lineares" de montagem estonteante, é-nos dada a narrativa inteira da vida de António Pedro. Nada fica de fora: as actividades artísticas; a fugaz ligação à política, do fascismo (destino de outros vanguardistas) de Rolão Preto até ao inevitável choque com a censura, a PIDE, a tacanhez oficializada do salazarismo; citações do "Pequeno Tratado de Encenação" ou da surrealista "Apenas uma Narrativa", que permitem a Pêra piscar o olho ao "Chien Andaluz" de Buñuel (e ao mesmo tempo ao olho-câmara do documentarista Dziga Vertov?); há tempo para episódios, "fait-divers" significativos, recordações amorosas de amigos e da viúva: "Trabalhos, arrelias, preocupações - quem é que não tem quando quer fazer alguma coisa?" Acção. "Alguma coisa". Acção. "Teatro é acção." TEP. "Acção falada." Palavras de António Pedro, homem-acção, num filme-acção de Edgar Pêra.

O efémero do teatro coloca problemas à sua "glória póstuma". Consciente desta maçada, Pedro escreveu numa ficção: "Sei que viverei eternamente embora não tenha intestinos nem fígado." Pêra resolveu o efémero recorrendo a uma outra ficcionalização, com processos que restituem "os intestinos e o fígado" ao homem-teatro.

Desses processos, o mais divertido é a utilização surrealista da linguagem televisiva, semelhante à de Peter Watkins no documentário "La Commune", 2001 (RTP2, 18-21/03): interrogam-se pessoas frente ao Magestic sobre quem era António Pedro (é uma rua que fica ao pé do Abadia); para ilustrar a ideia retomada por Pedro de que o teatro tem o "espírito dionisíaco duma multidão", mostra-se Carla Bolito na Ribeira usando o martelo no S. João; vendo da janela foguetório do Porto 2001, Bolito cita o título de um artigo de António Pedro "Será mais explosivo o teatro do que a gasolina?"; e na "manif" CGTP do 1º de Maio na Baixa, Nuno Melo faz de repórter (citando António Pedro) e Bolito grita, no meio dos manifestantes "Era uma vez, tudo no teatro é real! Era uma vez, unidade sindical!"

Este "Homem-Teatro" é um documentário de corpo inteiro, quer na concepção pessoal de um tema com mensagem filmado nos locais da narrativa recorrendo à linguagem visual do cinema, quer na concepção estética. É um "espaço onde se abre a possibilidade de constantemente se construírem, reconstruírem, criarem e recriarem e combinarem formas de ordenação dos elementos que dele fizeram parte", na definição de Manuela Penafria, no estudo "O Filme Documentário". Pêra escolheu um ponto de vista (mais estético do que ideológico, e centrado no António Pedro identificado com o Porto) e através dele construiu uma narrativa sem falhas quanto aos factos e ao sentido da acção de Pedro: o ponto de vista (o editorial) não escondeu os factos (a notícia).

A forma não escondeu o conteúdo, serviu-o. E, através da história do Homem-Teatro, Edgar Pêra mostrou-se a si mesmo, mostrou o seu processo criativo e deu mais um passo na sua forma de olhar, a sua estética, com este "autêntico ensaio sobre cinema". O Homem-Teatro ficou bem servido pelo Homem-Cinema.