Eduardo Cintra Torres

Douro, Faina Manoel


Com "Porto da Minha Infância", Manoel de Oliveira entrega o coração à sua cidade. Num percurso ao mesmo tempo dos sentidos, do espírito, da arte e das emoções, Oliveira mostra, quase no início, a estátua de D. Pedro IV, o rei liberal e romântico que fez do Porto a Invicta, e conta como ele pediu ao morrer que o coração lhe fosse arrancado do peito e oferecido à cidade que, sitiada, garantiu a vitória na guerra civil contra o absolutismo.

É de coração nas mãos que Oliveira regressa como documentarista ao Porto onde nasceu para o mundo e para o cinema. Sem o dizer, repete o gesto do rei neste filme-documentário também destinado a televisão (o projecto foi aprovado no primeiro concurso TV do ICAM, 2001). Oliveira não diz o que diz: um artista não mostra, esconde. Esconde mostrando e, por humana alquimia, torna possível mostrar escondendo.

O poema "Regresso ao Lar", erudição de poeta transformada em canção popular cantada em fundo por Isabel Oliveira, mulher do realizador, estrutura a construção poética do filme e homenageia, ao mesmo tempo, a mulher da vida do cineasta.

O poema de Guerra Junqueiro, transmontano que adoptou o Porto, constitui o Epílogo de "Os Simples" e perdura pelo lirismo evocativo. Nele, o bardo - que faz as vezes de Oliveira - recorda os anos que andou longe do seu "saudoso, carinhoso lar", rememora a vida antiga e diz à velha ama (aqui a cidade do Porto) que lhe cante cantigas de adormentar. Relembra as "pedrarias d'astros, gemas de luar", os sonhos, tantos que ficaram por nascer, e pede à ama com humildade que o deixe descansar.

A ternura de Junqueiro parecia inultrapassável, mas fez-se filme. Oliveira recorda o Porto que o ajudou a ser o que foi e é. A casa. Referências culturais. "Carmen" de Bizet. Os sítios que foram e já não são. A "Miss Diabo", teatro ligeiro de portuenses que o realizador recriou para se mostrar a nascer como artista: ele está, criança, no camarote e é o próprio realizador que está no palco aos 93 anos, no papel do cantor. A criança vê no palco o seu futuro. Manoel vê Oliveira no palco. O Porto não será o mesmo.

Fez-se homem pelo desporto, pelas noitadas, pelas leituras e pelas amizades e foi-se fazendo artista à portuguesa, como quem não quer a coisa, mas sem comprometer ideais, filmando com António Mendes e montando os bocadinhos de "Douro, Faina Fluvial" em cima da mesa de bilhar, imagem que simboliza essa união lúdica da arte e da vida.

Uma e outra cena desse primeiro filme surgem fugazmente. A gente vê-as e confirma que nada foi tão moderno no cinema português. Dos seus filmes passados, Oliveira só mostra aqui pedaços que arrancou do Porto para os fazer arte. Este filme mostra a cidade da sua vida e mostra a sua arte com Porto dentro. Vida e cinema ligados ao Porto. Agora, Oliveira entrega-lhe o coração em filme: tanta é a sorte que uma cidade pode ter!

O realizador-narrador revela-nos o barro com que fez o seu monumento: de um lado, granito e pessoas, Douro, rua, vida popular; do outro, nomes do Porto que, em vinhetas só na aparência separadas, vão-se mostrando como pedras do castelo de Oliveira: por exemplo, Garrett, cuja estátua no Porto o mostra como que a conquistar o mundo (e não é que conquistou?); por exemplo, Soares dos Reis de quem Oliveira mostra o Desterrado (e se o escultor se suicidou é como se o Desterro e o Suicídio andassem juntos e Oliveira aqui nos diga tê-los abjurado); ou ainda, por exemplo, a Agustina que povoa a sua ficção e aqui aparece lendo um dos seus textos insolentes que ofendem a burguesia provinciana do Porto (e ao incluí-la no seu filme, Oliveira significa também como se afasta do que é tacanho).

A arte e a vida misturam-se. Quando fala de um beijo que deu e não esquece, Oliveira mostra o das crianças do Porto em "Aniki-bobó", esse beijo que traz em si todos os beijos que são vida e perigo da morte (o miúdo resvala pelo telhado). As vinhetas estabelecem continuidades e cumplicidades. Em 1896, no Porto, Aurélio Paz dos Reis, outro tripeiro, fez o primeiro filme português, a saída dos operários da Camisaria Confiança. Em 2001, Oliveira, seu herdeiro no posto de guardador de imagens, coloca a câmara no mesmo local e faz da antiga Confiança um estaleiro do Porto 2001, de onde saem operários que hão-de esburacar a cidade. Se não fossem as imagens fixadas em película, diz Oliveira, como poderíamos ver essa pérola que é uma cena no Palácio de Cristal em que se vêem, segundo ele, José Régio e Fernando Pessoa, este nas únicas imagens em movimento que se lhe conhecem?

O cinema, com as outras artes, busca no rio da natureza e da humanidade os materiais que sublima em transcendência. As ruínas desfocadas da casa em que nasceu são regresso ao passado e fecho de ciclo. As mulheres da Ribeira de 1929 são a arte que subsiste. Não é preciso ver o Porto inteiro para ver o Porto todo: ele está na vida e na filmografia de Manoel de Oliveira. Vêem-se coisas que mostram outras coisas. São o novelo que leva à saída do labirinto.

No final, um plano percorre o novo passadiço sobre o Douro, na margem direita. Andamos devagar, ao chegar a noite, enquanto a estrada faz a curva, devagar como as águas do rio. O "travelling" avança até ao fim da curva e pára na igreja, na Ribeira. Na parede branca, há um painel de azulejos com a imagem do Infante D. Henrique e o plano fixa-se no Infante. Porquê? Porque ali começa uma ínclita linhagem: também o Infante nasceu no Porto, como Garrett, como Oliveira, e todos conquistaram o mundo do seu tempo e o mundo que construíram. Do azulejo passamos para um interior, uma estante de livros onde, além de uma gravura do Infante, o olhar passeia por livros de autores ilustres do Porto ou a ele associados: Arnaldo Gama, Camilo, António Nobre, Rodrigues de Freitas, Sampaio Bruno e outros.

Como eles, como o Infante, também Manoel de Oliveira partiu do Porto e conquistou o futuro. Partiu das margens-imagens do rio Douro-Faina-Fluvial. Partiu dessas águas e agora a elas volta, águas já de noite, águas já do mar. As águas do Douro repousam no escuro do mar da Foz e fundem-se com as outras obras, as da estante, dos outros autores ilustres do Porto, e fundem-se com a música erudita de Emmanuel Nunes e a música singela da voz que canta

"Canta-me cantigas, manso muito manso...

Tristes muito tristes, como à noite o mar...

Canta-me cantigas para ver se alcanço

Que a minh'alma durma, tenha paz, descanso,

Quando a Morte, em breve, me vier buscar!..."

Mestre, missão cumprida.