Eduardo Cintra Torres

Modos de Ver e de Olhar


O cadáver de Savimbi

Deveria a TV mostrar ou pelo menos censurar parcialmente as imagens do cadáver de Jonas Savimbi? Numa sessão no Instituto Franco-Português, ouvi alguém indignar-se com as imagens de "moscas verdes no bordo das pestanas de Savimbi".

As imagens saíram nos jornais, mas o mesmo tema emociona de formas diferentes se em foto impressa ou se em movimento num ecrã. As considerações éticas e deontológicas são depois diferentes em consequência das emoções provocadas.

Vi há um mês num jornal uma foto de página inteira do antebraço decepado da palestiniana morta no seu ataque suicida, com a mão gentil, os dedos cuidados e as unhas pintadas. A foto chocou, mas não escandalizou. Na TV teria escandalizado.

As imagens dum morto não chocam se a apresentação seguir as regras sociais: se for o corpo embalsamado de Lenine ou um corpo dignamente colocado num caixão numa telecerimónia, os telejornais estão à vontade e as emissões serão até glorificadas. Mas chocam se ele se apresentar como o de Savimbi: humilhado, arrastado, descalço, de cuecas à mostra - desconjuntado como um boneco.

Impressionaram-me também. Não por mas terem mostrado mas pelo que significam para mim, o que quer dizer que é a minha maneira de olhar que está em causa e não a liberdade de a TV as mostrar. Tal como José Pacheco Pereira (PÚBLICO, 28/02) pude conhecer Savimbi em Angola nos tempos áureos da luta contra cubanos e soviéticos. Em 1983 viu-o discursando para os seus, dando ordens. O seu carisma era intenso. Entrevistei-o numa madrugada na Jamba e presenciei o terror que inspirava nos seus mais próximos colaboradores. Pouco tempo depois, quando outro dirigente da UNITA que conheci em Lisboa, Wilson Santos, foi barbaramente assassinado em Angola às ordens de Savimbi, com processos de malvadez e bruxaria, vi o lado sombrio do carisma que existe em doses mais ou menos moderadas em todos os dirigentes, ocidentais, africanos ou asiáticos, tocados por esse tão estranho poder de domínio ou sedução sobre os seus semelhantes.

Savimbi morreu, porém, em combate. Queria ser número um. Prescindiu do segundo lugar e das benesses de petróleo e diamantes, do roçar das sedas num qualquer palácio de Luanda; regressou à mata e morreu quase sozinho, enquanto o seu adversário... nem vale a pena dizer mais, os leitores sabem o que é o fascismo africano.

As imagens daquele cadáver estão carregadas de significados. Retratam a brutalidade dos dois contendores e 35 anos de guerra, com mais ou menos ideais. O invencível foi vencido. O imortal morreu. O regime tinha de mostrar o cadáver de perto. A cara. O corpo. Os buracos das balas. Não era um sósia. Não era mais uma mentira da propaganda de Luanda, que tantas vezes anunciou a morte de Savimbi. As moscas vieram por acréscimo. Os angolanos daquela região que percorri em 83 sabem muito bem o que são moscas nas pestanas e no nariz e nos lábios. Se elas se colam aos vivos e eles vivem com elas, como o hipopótamo com aves esbeltas no dorso, como não havia de haver moscas no bordo das pestanas dum cadáver?

É preciso imaginar o "camaraman" angolano que as filmou: alguém do outro lado, alguém que também conhece a morte, que já viu e filmou outros cadáveres, muitos, de combatentes ou inocentes e para quem as moscas não são intrusas mas parte da paisagem humana. Aquelas imagens representavam um ponto de vista: eram imagens do cadáver do mítico Savimbi captadas pelo olho mecânico dum angolano ligado ao regime que o odiou e perseguiu e conseguiu finalmente calar.

O maior exército que há em Angola é o exército dos mortos e dos cansados. Pode ser que um dia esta multidão ruja a sua força à demência dos vivos.

Olhar para a câmara

A câmara cria modos de olhar próprios que todos aceitamos. As regras, que ninguém escreveu, são por exemplo, que o candidato político não olhe para a câmara como o apresentador dum noticiário. Só poderá fazê-lo se for para isso convidado pelo apresentador. Foi o que sucedeu no frente a frente entre Ferro Rodrigues e Durão Barroso.

Os candidatos não se dirigem directamente aos espectadores olhando para eles, isto é, para o olho da câmara. Dirigem-se aos intermediários da divina comédia da representação mediática. Durão Barroso leva esta regra das maneiras protocolares da TV ao ponto de dizer (disse-o a Judite de Sousa e na SIC) qualquer coisa como "respondo-lhe a si e através de si aos espectadores".

Ferro Rodrigues não dominou ainda o olhar e esse descontrolo da pupila nas órbitas oculares transfere-se para a sensação como o espectador recebe o seu comportamento não-verbal.

Na declaração final - o último acto da divina representação - os candidatos são autorizados a prescindir do telejornalista, sacerdote intermediário entre a TV e os mortais que assistem à cerimónia. Mas, por falha momentânea, a realização não cumpriu as suas próprias regras nos primeiros segundos da declaração do candidato do PS, mostrados à audiência não pela câmara escolhida para tal, mas por uma câmara lateral. Por causa disso, vimos Ferro Rodrigues a olhar para o lado. Este facto "desconstruiu" logo de início o conceito de "declaração final". O candidato do PS esteve a falar para um objecto (a câmara que não estava no ar) e não para "nós" (a câmara escolhida). Se fosse um "pivot" ele teria olhado para câmara certa ao perceber o erro do realizador.

O modo de olhar da TV influencia o do espectador, mas não é definitivo. Comentadores falaram em "empate", em "vencedor" e "vencido" no debate: viram pelo seu próprio olhar, quando o vencedor ou se conhece através de estudos de opinião junto de eleitores ou se conhece no próximo dia 17 à noite.

Quem conhece a câmara são José Sócrates e Maria Elisa Domingues. Ele é o rei dos comentaristas da SIC. Está em todas. Já assimilou o livro de regras de conduta "live on TV". Elisa Domingues tem 25 anos de experiência - mas falhou no debate contra Sócrates na SIC Notícias. A candidata portou-se como telejornalista de duas formas: primeiro, em vez de apresentar projectos, fez perguntas ao opositor, como se fosse a "entrevistadora" de Sócrates; segundo, olhou directamente para a câmara dizendo que falava para os eleitores de Castelo Branco. Desta forma, desconstruiu as regras do debate, desrespeitou o papel da jornalista moderadora, Clara de Sousa, e introduziu desatenção no espectador, que espera um olhar segundo as regras habituais. Na televisão (que é a maior fingidora de naturalidade que há no mundo) até a direcção do olhar tem regras.