Eduardo Cintra Torres

A Admirável Nova Televisão


O "director criativo" da agência publicitária autora dos anúncios com os jornalistas apresentadores da RTP1 fazendo caretas e saindo dum caixote dum televisor acha a coisa normalíssima. Disse Albano Homem de Mello (PÚBLICO, 28/01) que a RTP tem que criar as suas "estrelas" - portanto, as estrelas do jornalismo podem sair de caixotes - e que a postura dos jornalistas nesses anúncios "realça a faceta humana" - portanto, a comicidade apalhaçada é novo atributo do jornalismo.

Para o "director criativo" tudo isto é normal. Eu acho normal que ele ache normal. Para muitos publicitários tudo é publicitável e convertível às regras da publicidade; a publicidade torna-se tão ideologicamente contagiosa que perde as fronteiras com o resto do mundo. (O próprio facto de as agências de publicidade terem "directores criativos" revela a natureza da actividade: a criatividade é "liderável", faz parte da estrutura empresarial. A criatividade é uma "commodity" inscrita num organograma.)

Desta forma, a informação também pode ser transformada em publicidade e, assim, seguir as suas regras. Foi o que sucedeu com a campanha do caixote ou embrulho. Qual o conteúdo da informação, isto é, do caixote de papelão que representa a "nova televisão"? Os apresentadores dos noticiários. Fazem eles notícias nos anúncios? Não, fazem caretas e outras cenas supostamente cómicas. O conteúdo da "informação" são os apresentadores e as suas facécias. Parafraseando Octávio, imperador do nosso futebol, não se deve chamar palhaçadas à representação dos apresentadores da RTP1 nestes anúncios para não ofender a classe.

A publicidade não tem fronteiras, absorve todos os valores, todas as ideias, todas as emoções. Para a publicidade, o mundo inteiro é publicidade. E, sendo do domínio da ficção, a publicidade não precisa de dizer a verdade para ser tomada como verdadeira.

Curiosamente, a sociedade está pronta a aceitar como regra a ausência de fronteiras por parte da publicidade. Quando, na campanha eleitoral autárquica, a publicidade ao óleo Fula gozou com o "slogan" de um candidato político ("Eu frito" em vez de "Eu fico"), os comentadores sublinharam o humor mas nenhum indicou que a publicidade estava daquela forma a interferir na percepção política dos cidadãos em plena campanha eleitoral. Se o cartaz gozado do "Eu frito" estivesse assinado por outro partido, os protestos da Comissão Nacional de Eleições, dos políticos e dos comentadores teriam sido ferozes. A publicidade é impune.

A questão está em saber se, não havendo fronteiras na publicidade, chegou também o momento de o jornalismo televisivo deixar de as ter. Foram essas fronteiras do jornalismo que os cinco profissionais do caixote da RTP1 ignoraram quando deixaram os publicitários avançar com aquela patetice.

Os anúncios do caixote são apenas a figura que representa o todo. Eles mostram o mesmo que se vê nos noticiários da "nova televisão" o que a faz nova? A forma e os mensageiros da forma.

Alberta Marques Fernandes e José Alberto Carvalho mudaram de canal. Judite de Sousa mudou de penteado. José Rodrigues dos Santos tentou mudar pouco - agora anda a pé no estúdio quando antes estava sempre sentado, mas claudicou quanto a juntar-se ao anúncio do embrulho e das caretas. Mudou tanto na forma, que a "pivot" do Telejornal da RTP1 Fátima Campos Ferreira mudou quatro vezes num só dia: de noticiário, de canal, de penteado e de cor de cabelo. Só ela é a mesma de sempre.

Mudaram também os logótipos, que estavam bem, mas mudaram apenas porque mudou a direcção de informação - é o costume da RTP.

E mudou radicalmente o estúdio. Talvez Freud pudesse explicar por que razão o novo estúdio da RTP segue obsessivamente o modelo da SIC, acentuando-lhe apenas o lado carnavalesco: como a SIC acrescentou há pouco a mesma barra corrida da TVI, a RTP1 também o fez; onde a SIC tem um monitor, a RTP tem mais, onde a SIC tem uma fita colorida em movimento, a RTP1 tem duas, onde a SIC tem uns monitores ao fundo, a RTP1 tem uma data deles à frente, onde a SIC tem cores espampanantes, a RTP1 tem cores que escorrem berrância.

Aumentou, também, o tempo de emissão de notícias. O telejornal, que era antes moderado, passou agora a prolongar-se pelo mesmo tempo do Jornal Nacional da TVI, numa corrida ao recorde do terceiro-mundismo da informação televisiva. As notícias do Telejornal, que antes eram concisas, ganharam agora o mesmo registo de pastelice incompetente das da TVI e da SIC.

Quer dizer, em vez de manter um padrão de "serviço público" como o conhecíamos (que estava longe de ser perfeito), a nova direcção da RTP está a copiar os modelos das televisões privadas, mostrando ainda mais a irracionalidade dos custos que o país paga pela RTP.

Neste conceito de que "mais é melhor", a RTP1 iniciou o Bom Dia Portugal (retomando o programa matinal lançado pela administração de Proença de Carvalho), com a apresentação de Alberta Marques Fernandes.

Das 7 às 10, Alberta saltita na cadeira à menção de qualquer toque entre dois automóveis na Segunda Circular ou na Via de Cintura Interna. A inútil informação de trânsito tornou-se o suco da barbatana das televisões (SIC Notícias, NTV e agora RTP1), dando-se o caso de a rica RTP poder dar-se ao luxo de ter um helicóptero a mostrar o "déjà-vu" das filas automóveis.

Com poucas notícias para dar, qualquer agitação em demasia soa um pouco falsa ou mesmo ridícula. É o que sucede com a esforçada Marques Fernandes. Talvez a passagem do tempo e o cansaço pessoal de representar um papel errado levem Alberta a um registo em que a forma de apresentação, agora saltitante, corresponda à vacuidade do conteúdo.

Mas Alberta faz mais do que pular na cadeira: ela "entrevista" bonecos do Contra-Informação, numa encenação vexatória para o jornalismo como o conhecemos. Faz de actriz e "interroga" umas imagens pré-gravadas, nas quais fala um boneco. Este falar para o boneco é o momento-chave para se entender o jornalismo televisivo a que o canal de "serviço público" chama "nova televisão". Em vez do jornalismo "à antiga" temos um vácuo informativo preenchido com adereços carnavalescos, informação baseada na prestação de actores dos "pivots" e diálogos grotescos com bonecos.

De pequeno passo em pequeno passo, o jornalismo televisivo (de todos os canais generalistas) vai-se afastando dos modelos herdados da imprensa escrita dos séculos XIX e XX. Na televisão, a informação caminha pouco a pouco para um "código deontológico" próprio e para sobrepor os aspectos formais da visualidade e da oralidade ao conteúdo. O conteúdo é só a forma. A "nova televisão" da RTP1 é isso, uma nova demão sobre as mesmas ruínas. E, deste ponto de vista, o tal "director criativo", não dizendo a verdade, também não mentiu: de facto, para quê dar notícias quando se pode dar só o embrulho?