Eduardo
Cintra Torres
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Expulsos pela Miséria |
A emigração foi a irmã siamesa do nosso subdesenvolvimento no século XX: eis uma boa razão para que a Crónica do Século lhe reservasse dois programas temáticos (RTP1, 16 e 17/1/02). Um professor de Fóios, Guarda, disse no início do primeiro programa que ao emigrar para França nos anos 60 não ia embora - ia "expulso pela miséria". Grande frase! O arranque do teledocumentário pintou com momentos significativos o quadro da emigração, nomeadamente recorrendo a uma cena forte dum programa da casa, "Horizontes da Memória", a confirmar a capacidade de José Hermano Saraiva na criação de discursos plásticos significativos. A emigração foi dividida em dois programas: para as Américas (Brasil nas primeiras décadas e, na segunda metade da centúria, Estados Unidos) e para a Europa (França em especial, a partir dos anos 60). No âmbito da série, os dois programas, intitulados "A Terra dos Adeuses", distinguiram-se por terem concepção historiográfica. Em vez de olhar simplisticamente para o passado - os regimes políticos a quererem dizer alguma coisa -, a autora, Maria do Rosário Lopes, considerou o fenómeno historicamente e ignorou quase por completo as questões de regime político. Fez bem. A emigração teve menos que ver com monarquia, república, fascismo ou democracia do que com a pobreza sem saída, o subdesenvolvimento. Concebidos como história do povo português do ponto de vista do povo português e não a partir do ponto de vista do poder (que é também o de muitos historiadores, mesmo os "progressistas"), os programas conseguiram a proeza, até agora única nesta série, de verem a História de longe ao mesmo tempo que souberam estar dentro dela, isto é, penetraram no entendimento de como os portugueses, passados ou presentes, emigrantes ou não, viveram o problema. Vista a emigração como fenómeno do colectivo, acima das questões de regime, a série pôde ignorar epifenómenos como a emigração política (que a houve desde 1910 até depois do 25 de Abril) e a emigração de intelectuais. Na mesma linha, é ainda aceitável que os programas ignorassem dois fenómenos expressivos como a emigração de portugueses de África para o Brasil em 1974-75 e alguma emigração para a Europa como fuga à guerra em África. Dado que os programas tiveram uma construção historiográfica e narrativa forte, as omissões não foram importantes em programas que quase nada do tema deixaram de fora e que souberam recorrer com utilidade a especialistas. Mas o que determinou a estrutura e o impacte de "A Terra dos Adeuses" foi a ampla voz dada aos próprios emigrantes, a ressonância da palavra dos protagonistas. Em resumo, foi uma verdadeira crónica do século, respeitando a todos. Se, do ponto de vista estético, os programas não convenceram totalmente (inclinaram-se às vezes para a reportagem, afastando-se do teledocumentário), dos pontos de vista de concepção e adequação dos materiais audiovisuais aos conteúdos estiveram muito correctos. As falhas que notei foram de pouca monta. Mencionou-se as remessas dos emigrantes a partir dos anos 60, mas nesse caso deveria referir-se que também nas primeiras décadas as remessas foram fundamentais: sem elas, disse Afonso Costa em 1911, o país não teria resistido "a tantas provações". Nesse ano o dinheiro enviado pelos emigrantes quase somava o défice da balança de pagamentos. Outros detalhes teriam enriquecido o programa: por exemplo, o falhanço da exportação de Estado de emigrantes para África durante o século, falhanço que se deveu à inexistência de mão-de-obra especializada em Portugal (isso explicará também a inferiorização do emigrante português no Brasil face à emigração mais preparada de outros países europeus). O balanço do século da emigração portuguesa serve hoje de reflexão quando Portugal mudou radicalmente, de fornecedor de emigrantes para importador de imigrantes africanos e leste-europeus. É lamentável que Portugal pouco tenha interiorizado dos males que os nossos emigrantes sofreram pelo mundo fora e que agora africanos, ucranianos, ou romenos, todos sejam maltratados e espezinhados pelo Estado, morram nas obras nacionais e durmam em barracas miseráveis, sobrevivendo sob governantes que, se calhar, nos anos 60 e 70 se manifestavam contra os "bidonvilles" de Paris. * * * O terceiro tema da Crónica do Século, depois da condição feminina e da emigração, foi "Cultura Popular e Tempos Livres" (RTP, 18/1/02). Da autoria de José Manuel Silva Levy, foi o pior dos três. Tendo em conta que o programa esteve dois anos em preparação, é de bradar aos céus um tão fraco resultado. Não tinha conceito - nem era teledocumentário, nem viagem no tempo, nem mesmo reportagem retrospectiva -, tão-só uma colagem de vinhetas bombardeadas de lugares-comuns. O autor limitou-se a sacar dos arquivos pedaços de imagens em movimento e a sonorizá-las com frases que encaixassem. Fez pena ver tão mal aproveitadas imagens interessantes, e até provavelmente novas em TV, como umas da Figueira da Foz nas primeiras décadas do século XX. Os testemunhos recolhidos eram poucos e deslocados. É impressionante que um tema como este não tenha motivado a procura de mais, muitos depoimentos populares. Tal como nos programas sobre a mulher, o fantasma dos regimes pairou do primeiro ao último minuto. O programa concentrou-se sobre o Estado Novo (por magistério do coordenador científico, Fernando Rosas?), embora esse regime represente menos de metade do século XX. Salazar apareceu cinco vezes, a propósito e a despropósito. O programa insistiu na política salazarista de reorientar os tempos livres, mas ignorou que todos os regimes fazem o mesmo: na monarquia, por exemplo, tentou-se domesticar o Carnaval nas grandes cidades; na República, as principais festas do povo - as religiosas - foram reprimidas ou mesmo proibidas; e na actual República, que outra coisa é senão uma imposição do regime esta autêntica ditadura do futebol que Estado, Governo, políticos e "media" impõem ao país? Trata-se de opções do poder em geral, não apenas de regimes específicos. Mas o programa, se não percebeu nada do que estava a tratar, também não poderia perceber isso. Quando no final, referindo-se à TV e à Internet, perguntava "estará a cultura popular condenada a desaparecer?", o programa revelava não saber que a TV e a Internet são dois dos principais meios de transporte da cultura popular nas suas formas actuais e, já agora, revelava não ter sequer um conceito operacional de cultura popular. |