Eduardo
Cintra Torres
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A Luta Contra o Silêncio |
Dois anos depois, a RTP retoma a Crónica do Século, agora em sequência temática e não cronológica. Os dois primeiros programas desta série foram dedicados à condição feminina no século XX português (RTP1, 14 e 15/01). Ao terminar o segundo programa, uma fundadora do Movimento Democrático das Mulheres (MDM) disse que a luta pelos direitos das mulheres não medrara porque "a esmagadora maioria" das organizações femininas "estava directa ou indirectamente ligada a partidos políticos", os quais, "por muito progressistas que sejam, têm uma lista de prioridades na qual a questão das mulheres foi sempre marginalizada". É verdade que no século XX as feministas sentiram necessidade ou obrigação de se envolver nas questões de regime, prejudicando a luta própria das mulheres: lutaram lutas "dos homens", remetendo o feminismo para uma ínfima visibilidade. No século XX, os homens estiveram no poder ou na oposição; a luta das mulheres esteve sempre na oposição. A Crónica do Século referiu aspectos importantes dum longo caminho, como a luta moderada das primeiras feministas, a insistência no direito à educação e ao trabalho (justa mas típica reivindicação da mulher burguesa), o reconhecimento de alguns direitos da mulher na República, a submissão da mulher no quadro legal e ideológico do fascismo e a grande libertação, na legislação e na sociedade, permitida pelo 25 de Abril. Todavia, os programas deram uma visão maniqueísta do tema. O primeiro episódio abriu com o tema da militância maçónica de destacadas feministas no início do século, sublinhando essa ligação como benéfica para a luta das mulheres. Mas omitiu que as mulheres eram discriminadas na própria Maçonaria. A feminista Adelaide Cabete abandonou a sua loja maçónica e inscreveu-se numa maçonaria de Paris "por ter aí os mesmos direitos que os homens". Os importantes passos dados pela Primeira República, como a lei do divórcio (também importante para os homens, claro), foram sobrevalorizados face ao acentuado machismo do regime. O caso da médica Carolina Ângelo foi destacado - a única mulher que votou, em 1911 - mas poderia ter sido indicado que o regime (masculino) anulou-lhe o voto. As mulheres nunca puderam votar na República. O dirigente republicano Afonso Costa, elogiado no primeiro programa, era um reaccionário neste domínio; ele mesmo disse em 1913 ter "recuado" na defesa dos direitos políticos da mulher, pois preferia ver "a mulher vivificante no lar". Isso era o que defendia a esmagadora maioria dos republicanos, pelo que é incompleto identificar essa posição apenas com o regime fascista, como fez o programa. Aliás, nos anos 20 houve feministas que defenderam o regresso ao lar como um avanço da situação da mulher, coincidindo com o Estado Novo. O programa também ignorou que a primeira vez que as mulheres tiveram algum direito de voto foi com o Estado Novo. Claro que isso é pouco quando o voto não serve para nada, como sucedeu até 1975. Mas, mencionado o tema do voto antes do Estado Novo, o programa tinha a obrigação de referir o voto de 1933. Sobre o período fascista, a crónica incidiu particularmente sobre o sofrimento infligido sobre algumas dirigentes feministas não tanto pelo facto de o regime ser antifeminista mas por ser fascista, caso da tortura e prisão de Isaura Borges Coelho por se opor à tenebrosa lei que proibia as enfermeiras (e telefonistas, como foi revelado) do Estado de se casarem. O programa sublinhou também a carreira de Maria Lamas, que representou uma nova geração de feministas, empenhadas na luta antifascista e em organizações ligadas ao PCP. Também ela foi várias vezes presa pela PIDE. O programa deu voz às mulheres das "casas do Partido" (PCP), mas esse episódio inscreve-se na luta política e não na condição feminina. As dirigentes ou militantes da oposição estavam, porém, desligadas da esmagadora maioria das portuguesas, como já sucedera nas primeiras décadas. Quando depois de 1945 uma organização de mulheres "pela primeira vez se volta para as operárias" é porque isso se enquadra na luta geral antifascista. "O feminismo perdera-se em nome da luta exclusiva contra a ditadura", referiu correctamente o programa. Contra este bloqueio se entregou Maria Lamas durante dois anos, dando a conhecer as "Mulheres do Meu País" numa obra que antecipa as incursões de arquitectos, musicólogos, linguistas e etnólogos pelo país rural. Com a luta das mulheres fora das prioridades da oposição, não admira que, depois do 25 de Abril, quando na frente legal começa a ter todos os direitos, até no PCP "a mulher era um cidadão de segunda", como disse uma antiga militante. Na manifestação feminista no Parque Eduardo VII em 1974, as manifestantes foram agressivamente assediadas pelos mirones masculinos e, como referiu Adelino Gomes, criou-se o persistente boato (até hoje) de que tinham sido queimados "soutiens", um mito à altura do desenvolvimento do país. O programa passou demasiado depressa por casos que envolveram a condição feminina até aos nossos dias, situações mais difíceis de explicar por se afastarem da estreita ligação à política e por serem mais do domínio do social e do mental. Ao passar a correr pelas lutas surdas da condição feminina, o programa enfermou afinal do mesmo erro que marcou os partidos, segundo referia a antiga dirigente do MDM: ouviu mulheres envolvidas em lutas políticas, dirigentes associativas e estudiosas da condição feminina e quase confinou a mulher comum ao mesmo silêncio que quase a calou durante todo o século XX. O programa esqueceu, por exemplo, o caso paradigmático de Adelaide Coelho da Cunha, sem ligação à política mas absolutamente no cerne do drama da condição feminina. Este drama feminino dos anos 20, tão significativo, motivou um filme português (de Monique Rutler) e é objecto do actual folhetim de Agustina Bessa-Luís no "Independente". Enxertando a questão feminina no âmbito das questões de regime, a Crónica do Século não puxou pelo lado que mais deveria interessar às mulheres: uma luta quase sempre silenciosa pela conquista dos seus direitos políticos, profissionais e sociais num mundo dominado por homens, quer o regime fosse monárquico, republicano, fascista ou democrático. O julgamento das 17 mulheres na Maia, com menos visibilidade que qualquer passe polémico da bola no relvado, expõe este sufocante silêncio que chegou ao século XXI. Numa entrevista de 1974, Maria Lamas recordou: "O luar de Agosto projectava as grades no quarto e eu começava a sentir um tremor, um tremor, porque tinha a impressão que eram umas garras, umas forças misteriosas e cruéis que vinham. E eu puxava a cama, fugia, escondia-me para os cantos do quarto para não ser apanhada." |