Eduardo
Cintra Torres
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O Retrato Que Eu Pintei |
A minha referência aos antecedentes sociais da jornalista Alexandra Abreu Loureiro (8/1/02), apresentadora na SIC Notícias, foi interpretada por alguns leitores como uma defesa da "Linha" (eufemismo para a burguesia identificada com a Linha do Estoril). Nessa leitura, eu teria feito da "Linha" a linha justa!, fonte geradora de qualidades de "linhagem"! A culpa foi minha, não me expliquei bem. A referência parecia menos resultado de Crítica do que de Gosto. Para agravar a recepção inesperada do meu breve comentário, usei a palavra qualidade no sentido de característica e a palavra distinção no sentido de diferenciação. Porventura alguns leitores julgaram que eu estava enaltecendo a "nobreza", a "linhagem" da jornalista ao dizer que ela se distingue, quando eu estava a dizer que ela se diferencia por isto e por aquilo. Por que escrevi eu sobre o assunto? Pensei: se Alexandra Abreu Loureiro não se distinguiu pelas suas qualidades de jornalista, mesmo que as tenha, o que será que a distingue (diferencia) junto de espectadores para que haja tantas referências públicas à sua aparição no ecrã? Abordei o assunto mais pelo facto de muita gente se lhe referir do que pelo facto de achar que isso era importante anotar do ponto de vista televisivo. E o meu texto resultou da constatação de que as referências públicas à apresentadora da SIC Notícias se devem a sensibilidades de diferenciação social e nada têm a ver com a sua prestação profissional que, a propósito, referi como uma mais-valia positiva para o canal. A necessidade de escrever sobre a jornalista foi, pois, consequência em primeiro lugar dos inúmeros comentários escritos e vocais que tenho lido e ouvido sobre ela, desde os óculos à roupa, desde a "presença" ao prémio da Portugal Fashion (nem por acaso, o "Prémio de Imagem"). Ora, o que interessa à crítica, mais do que considerações estéticas, é o porquê da diferenciação, o porquê da dimensão pública da "presença" de uma apresentadora, o porquê das invejas e oposições (inclusive dentro da SIC Notícias). Eu não quis identificar as qualidades da apresentadora como qualidades inatas de quem é da "Linha". Era o que faltava! Conheci demasiados meninos da Linha ignorantes, malcriados e que falam alto para saber que as qualidades e defeitos de educação e de inteligência se distribuem muito democraticamente por todas as classes e grupos sociais. Mas também não tenho dúvida de que as características que diferenciam Alexandra Abreu Loureiro estão em parte relacionadas com a origem social e familiar da jornalista. Não me parece nada mal que haja uma "menina da Linha" boa apresentadora de noticiários, a par com outros jornalistas de outras origens, também eles bons apresentadores de noticiários. A variedade é melhor que a monotonia. Mas há "outra coisa" neste caso, e pode ter sido essa que incomodou alguns leitores. Eu denunciava uma triste realidade que é melhor para todos ficar calada: as oposições de classe existem!, as sensibilidades classistas existem e são fortíssimas. Há dentro de cada pessoa uma surda luta de classes. Vivemos numa sociedade que não só ilude as diferenciações ideológicas de classe como procura esforçadamente escondê-las. Existe esse tabu nos meios de informação e nas relações sociais. É o que Roland Barthes chamou a ex-denominação: "Como facto ideológico, [a burguesia] desaparece completamente: a burguesia apagou o seu nome ao passar do real à representação, do homem económico ao homem mental." Ao tempo em que Barthes escrevia (1956), a ex-denominação era fenómeno da burguesia "clássica". Hoje, com a conquista de toda a sociedade pelos valores burgueses (já nem a classe operária e os seus putativos representantes políticos, como o PCP ou o BE, exprimem orgulho de classe e ser um burguês "bom" é o objectivo de toda a gente), a ex-denominação tornou-se um fenómeno universal. Não se mencionam as diferenciações que podem evidenciar... diferenciações que não interessa evidenciar! Acontece, porém, que toda a gente transporta consigo marcas da sua origem e do seu meio (as marcas estão em todo o lado, em todas as mil manifestações da comunicação verbal e não-verbal). O professor Henry Higgins conseguiu mudar o inglês de Eliza Doolittle de "cockney" para o inglês da sua classe, mas não foi à primeira que lhe mudou o discurso. E se o Pigmalião de George Bernard Shaw acaba bem, é porque... é ficção. George Orwell, quando nos anos 30 se disfarçou de proletário sem abrigo, sentiu-se aterrorizado a primeira vez que teve de falar com outro sem-abrigo porque estava certo de que a sua fala trairia a origem de classe burguesa. Ele podia disfarçar o aspecto exterior ao corpo, as roupas, mas nada mais. Alexandra Abreu Loureiro não disfarça nada e faz muito bem, é fiel à sua natureza. Isso não é bem tolerado mas, devido à ex-denominação, as referências são disfarçadas, deformadas. Quando referi a origem de classe de uma jornalista acordei um monstro adormecido. "Então os jornalistas têm origem de classe?! Não são eles apenas de um formalismo branco, como os anjos?!" Ora eu acho que as diferenças de classe e de grupo existem e contam muito nas opiniões quotidianas, olá se contam! Não é preciso sair de casa para se viver essa realidade, ela existe em casa e mais ainda quando se acende o televisor. Foi isso que quis dizer e parece-me importante que a crítica de televisão esteja atenta também a estes fenómenos de representação ideológica, os quais estão profundamente incrustados na vida e estão, por isso, colados ao ecrã em cada segundo em que o iluminamos. Muitas decisões - quotidianas, pessoais, profissionais - são tomadas com base na diferenciação social dos intervenientes. No caso em apreço, pode acontecer - mas seria injusto - que Alexandra fosse beneficiada ou prejudicada por se diferenciar devido ao seu evidente enquadramento social. Se o crítico, tendo-a à sua disposição, não usar esta categoria de análise, desiste de procurar elucidar o que viu no ecrã e colabora numa ocultação elaborada e aceite pela comunidade. Mas, claro, se o fizer, corre o risco de ficar isolado: "Quando o mito atinge toda a colectividade, se se quiser libertar o mito é de toda a comunidade que temos de afastar-nos." E Barthes acrescenta que para o crítico "a destruição que introduz na linguagem colectiva é absoluta, ela enche até desbordar a sua tarefa: deve vivê-la sem esperança de reciprocidade, sem pressuposição de pagamento". No fundo, qual retrato de Dorian Gray, a televisão serviu neste caso como o mais mágico dos espelhos, um espelho que mostrou para além da realidade espelhada, mostrou uma realidade escondida. Eu sei que isso é difícil de aceitar, mas, por favor, não prendam o crítico! |