Eduardo Cintra Torres

A Imagem: Esterco Ou Maravilhosa Alegoria?


O que encontra um espectador não "educado" na TV-CN? Conversa católica, missas com canções, culto mariano, catecismo e "talk-show" católico. Entre Goucha da RTP, Fátima Lopes da SIC e a conversa da TV-CN, a diferença principal é que uns são supostamente neutros e a outra é abertamente católica, uns dizem que não têm mensagem e a TV-CN diz que não tem outra coisa.

Esta semelhança entre a TV-CN e canais para o "grande público" evoca uma questão central: a TV é um meio irreversivelmente de entretenimento. Tudo o que toca - ciência, história, debate, programas educativos - transforma-se em entretenimento; tudo se mede mais pela capacidade de entreter a audiência do que pelo conteúdo e mensagem.

Isso já foi há muito estabelecido nos EUA, onde a religião usa com eficácia a possibilidade comunicativa da TV. Não refiro apenas os tele-evangelistas, como o imensamente popular Billy Graham ("numa única emissão de TV, eu prego para mais milhões do que Cristo em toda a sua vida", afirmou). A Igreja católica americana há muito que usa a TV para evangelizar.

Neil Postman, em Amusing Ourselves to Death, diz que a inadequação da mensagem religiosa pela TV se deve não à mensagem mas à natureza do meio televisivo.

A questão é sempre a mesma: como adequar mensagens aos meios de massas. As telemissas do padre Rossi divulgam o padre Rossi ou divulgam a mensagem? A "aeróbica do Senhor" de Rossi é só para ver ou inclui religião? Consegue a TV iniciar nos mistérios da religião ou apenas consegue mostrar a superficialidade do culto mariano tão repetido na TV-CN? A TV banaliza a religião? E a Igreja quer essa banalização? Pretende usar a cultura de massas (Top 10, audimetria) sem correr o risco de se submeter às suas regras? Isto é: os mensageiros não abdicam da sua mensagem no conteúdo e na forma ou, como disse o director executivo da Associação de TV Religiosas dos EUA, "você só obtém o seu 'share' da audiência se der às pessoas o que elas querem"?

Para as religiões, o perigo não é que, conclui Postman, "a religião se tenha tornado o conteúdo dos espectáculos de televisão mas que os espectáculos de TV se venham a tornar o conteúdo da religião".

Esse perigo devolve-nos o debate antiquíssimo da ligação da religião à tentação da imagem. A religião é da ordem da palavra. No princípio era o Verbo, diz S. João; o Verbo é o princípio da religião. Só a palavra permite abstracção, generalização, especulação espiritual; a imagem pela imagem é do domínio do concreto. A palavra, na religião cristã, é também narrativa e a imagem é descritiva. Enquanto outras religiões, como a muçulmana, aboliram as imagens ou, como o protestantismo, limitaram o seu alcance, o catolicismo inebriou-se do mundo esplendoroso das imagens que são uma das glórias da arte ocidental.

Mas isso foi antes da televisão. A TV perturbou a Igreja, como mostram os documentos do Vaticano desde a Exortação de 1954 de Pio XII sobre "Vantagens e Perigos da Televisão".

A TV traz de volta o espectro da imagem. Tem, contra a rádio, a "desvantagem" de acrescentar a imagem ao verbo. Daí que a TV-CN se tenha de manter o mais possível ao nível da oralidade, da imagem-acessório: é o caminho para manter alguma dignidade na transmissão de valores religiosos (e é barato); já no caso da TVI, envolvendo-se num canal generalista - com filmes e séries, isto é, conteúdos imagéticos -, a Igreja deixou-se tentar pela imagem.

O uso ou não da imagem é um tema antigo; no século XII, motivou posições opostas do famoso Suger, abade de Saint-Denis, e de S. Bernardo, o cisterciense, o mais influente intelectual do tempo. Suger dirigiu a renovação da velha igreja da abadia; ali nasceu o estilo gótico. A igreja ficou coberta de imagens, esculpidas, pintadas, esmaltadas, vidradas. A opção de Suger não era nenhuma heresia: o Sínodo de Arras tinha antes estabelecido o que Honório de Autun definiu como "a imagem é a literatura do laico". Mas o recurso à imagem como meio de transmitir a mensagem religiosa não agradava ao austero Bernardo.

Bernardo ficou realmente perturbado com as magníficas imagens. Sentiu a tentação da imagem. O seu texto sobre o assunto tem a modernidade do génio (ver caixa). Coloca questões fundamentais: ver imagens pode ser mais agradável do que ler e substitui a leitura; ocupa "o dia inteiro" (quatro horas de TV por dia?); é incompatível com a meditação. A tentação da imagem deveria provocar "vergonha" aos homens de Deus.

Noutro passo, o santo de Claraval sente que a austeridade a custo imposta à sua Ordem era ameaçada pelo "esterco" dos prazeres sensuais como os da imagem: "Afastados do mundo, tendo por amor de Cristo abandonado luxos e riquezas, nós considerámos tudo o que deleita os olhos pela sua beleza, encanta os ouvidos pela melodia, inebria o olfacto com um suave aroma, delicia o paladar pela doçura do sabor, dá prazer ao tacto, numa palavra, todos os prazeres relacionados com o corpo, nós considerámo-los como esterco."

Entre o "esterco" e as "maravilhosas alegorias" de que Suger se orgulhava nas suas memórias, como fazer TV religiosa para conquistar as massas e não ofender a ortodoxia dos "educados" e guardiães do "gosto"?