Eduardo
Cintra Torres
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Canção Nova, Questão Velha |
A eventual criação dum canal português baseado no brasileiro Canção Nova (TV-CN) que a TV Cabo retransmite está na ordem do dia da Igreja portuguesa. O TV-CN começou no Brasil há 12 anos e criou uma base de 250 mil contribuintes e 70 milhões de espectadores regulares, convivendo - ou competindo - com outra rede católica e uma pequena estação educativa jesuíta (PÚBLICO, 18.10). A TV tornou-se fundamental para o catolicismo brasileiro perante a perda de 40 de 170 milhões de habitantes para os evangélicos (DN, 28.07). E em Portugal a IURD já tem o seu canal brasileiro em duas redes de cabo. A versão portuguesa da TV-CN é iniciativa do bispo de Leiria-Fátima, Serafim Ferreira Silva. A autorização de emissão ficou congelada porque o processo foi entregue incompleto ao Instituto da Comunicação Social (ICS). Faltou uma garantia bancária de 100 mil contos, documento obrigatório para que a Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS) pudesse apreciar o projecto. O canal brasileiro e o projecto português motivaram a oposição dos restantes bispos na Conferência Episcopal - recordando a experiência traumática da Igreja na TVI e evocando eventuais divergências teológicas (PÚBLICO, 18.10). Apesar disso, apesar de o vice-presidente da Conferência ter chamado ao projecto "problema de uma instituição e de um bispo", apesar de o bispo de Lisboa ter colocado "as mais sérias reticências" ao canal, D. Serafim, que só depende do papa, não desarma; outros bispos além dele estão presentes na emissão do TV-CN, como os de Évora e de Portalegre. O início em 6 de Dezembro dum programa português no canal, do padre João Seabra, indica que, apesar de o canal continuar brasileiro e sem licença para operar como canal português, existe um sector da Igreja empenhado em ir avançando na sua consolidação. O TV-CN foi também condenado em declaração condenatória de personalidades católicas (PÚBLICO, 16 e 17.11) e uma das partes envolvidas no projecto português, a Ajuda à Igreja que Sofre (AIS), desvinculou-se (PÚBLICO, 05.07). Esse facto tornará mais difícil a D. Serafim arranjar os cem mil contos na diocese. A opção escolhida será, assim, a de incluir programação portuguesa no canal brasileiro, o que se acentuou com a estreia de Directo ao Assunto, do padre Seabra. O efeito é o mesmo e evita a despesa dos cem mil contos antes da consolidação e de vencer as resistências da Conferência Episcopal. No campo das divergências, o grupo de católicos fala de "imagens religiosas e situações de culto que são incompreensíveis e até vexatórias para a grande maioria dos cristãos", enquanto a AIS acusou a TV-CN de mentalidade "neojansenista, intolerante, moralista e intimista". Graves acusações! Convinha, pois, ver o TV-CN. É um canal confessional, exclusivamente dedicado à propagação do catolicismo, à emissão de funções religiosas e divulgação de obras sociais da Igreja. O canal é dominado pela oralidade, como se fosse quase só rádio com imagem. Não há programas em que a imagem seja primordial, como é o caso do cinema. Quase tudo em estúdio, excepto as gravações ou directos de cerimónias, os meios técnicos são reduzidos, a realização é medíocre, a iluminação é má e o som é péssimo. É um canal amadorístico; logo, confrange. Domina a religiosidade superficial (para as elites), marcada pela maneira de ser brasileira e baseada na oração repetida, canções e danças tipo missas-pimba do padre Marcelo Rossi e muito terço bizantino. Há catequese, aconselhamento, um talk-show católico chamado PHN (Por Hoje Não), com testemunhos populares de fé, canções e perguntas com dúvidas sobre pecados e coisas assim. Há entrevistas sobre trabalho social e ajuda a pessoas simples com problemas simples. Há programas infantis. O programa matinal inclui culinária e o que antigamente se chamava lavores. O lado popular foi confundido com populismo pelo grupo de portugueses críticos; a confusão resulta também da forma de os padres e bispos católicos brasileiros se expressarem: exteriorizando, com máscara risonha, à americana, e com a palavra fácil. Do lado de cá do Atlântico, no Portugal excessivamente grave, tristonho e com medo do ridículo, o telecatolicismo brasileiro confunde-se facilmente com demagogia; mas há um certo exagero em dizer-se que a TV-CN tem uma "linguagem que pode ser associada a algumas seitas". A TV-CN não entra nos mesmos êxtases e excessos que caracterizam a IURD. Se é de "medíocre qualidade técnica", isso não deveria ser suficiente para católicos condenarem o canal. As missas nas catacumbas romanas não deixavam de ser missas. Ao contrário do que se podia supor, a TV-CN, apesar da pobreza técnica, da quase-demagogia e da estranheza da forma brasileira de afirmar a religião, tem a dignidade mínima que permite a uma parte da hierarquia da Igreja portuguesa manter o seu apoio ao canal. A religiosidade popular (ou popularmente expressa) assusta outros católicos. O surgimento das massas católicas na TV assusta católicos educados da mesma forma que o surgimento da programação popular na TV assusta as elites agnósticas. O receio do grupo de católicos com acesso à imprensa - isto é, da elite católica nacional - em ver o povo católico na TV foi assinalado por Mário Pinto no PÚBLICO (03.12); para ele, o TV-CN enquadra-se no Renovamento Carismático, isto é, na renovação formal do catolicismo no sentido de reconquistar as massas, o que implica as missas-pimba de Marcelo Rossi ou a penetração no "media" TV. A pobreza do canal faz sentido na forma como Mário Pinto define o canal: "É uma televisão pobre por opção e desejando pertencer aos pobres." Mário Pinto referia, com razão, que algumas críticas ao canal brasileiro, mesmo aquelas com que concorda, se basearam na questão do "gosto", isto é no diferenciador de classes: a TV-CN não tem o "gosto" de elites católicas. Está visto que os carismáticos passaram por cima da questão do gosto e pretendem apenas conquistar as massas: "sem se fechar em problemáticas demasiado intelectualistas ou racionais, evitando parecer uma teologia para uma elite de alguns cristãos", segundo um teólogo do Vaticano citado por Mário Pinto. "Hoje, acrescenta esse teórico, é necessária uma teologia popular, uma espiritualidade do povo." No âmbito do Renovamento Carismático Católico, os promotores da TV-CN sabem que o povo não liga nenhuma à ortodoxia. Como escreveu George Orwell, "uma das analogias entre o comunismo e o catolicismo romano é que só os 'educados' são completamente ortodoxos." Esses "educados", acrescentou, são pessoas que "desenvolveram as supostas implicações da ortodoxia até envolverem os mais ínfimos detalhes da vida." "Nunca um católico das classes trabalhadoras seria tão absurdamente consistente como isso", conclui Orwell. Os promotores da TV-CN poderiam dizer o mesmo das suas audiências populares. [Nota: A crítica do TV-CN prossegue no próximo artigo] |