Eduardo Cintra Torres

A União Nacional Rosa e o Juiz de Penacova


O esboroar da governação do PS tem emudecido vozes que durante anos mantiveram em funcionamento o "estado de graça" do guterrismo na imprensa, rádio e TV, mas não destruiu em nada a invejável máquina de propaganda criada pelo PS, sem comparação com o que outros governos e partidos criaram desde o 25 de Abril.

Mantém-se a política de União Nacional Rosa em que pontifica o discurso habitual de Jorge Coelho, inscrito na linha da sufocação comunicacional do Partido Democrático de Afonso Costa na 1ª República e da União Nacional "democrática" que Caetano pretendia criar, uma pseudodemocracia musculada semelhante à de Marrocos ou de repúblicas latino-americanas.

Através dum conjunto de passos decididos, que parecem apontar para a existência dum plano, a governação de António Guterres, Coelho e Arons de Carvalho neste domínio visou criar uma situação em que - sendo impossível o partido único - fazia do PS um partido acima dos outros, perante o qual os outros eram menorizados.

Com uma oposição fraca (e fraca, em parte, pela humilhação permanente que a comunicação coelhística conseguiu impor com tremenda eficácia), a criação deste ambiente permitiu ao PS uma certa inimputabilidade: fez o que quis. Enquanto se criava a anestesia da opinião pública, prosseguia o forrobodó com os dinheiros públicos e a transformação do aparelho de Estado numa agência de empregos como nunca se viu em democracia.

Para construir este ambiente, a governação do PS tomou, entre outros, os seguintes passos na área da comunicação:

- exclusão do debate político dos órgãos do Estado (RTP, RDP). Cria-se assim uma União Nacional Rosa que "tolera" a oposição. Mesmo em períodos de actividade política intensa (discussão de Orçamento, etc), a RTP e a RDP não fazem debates;

- criação de canais e meios adicionais para compensar a existência de privados: as RTP África e Internacional estão na TV Cabo para que, no "zapping", vejamos mais uns segundos por dia as caras de Guterres, Coelho e José Lello;

- criação de outros meios: NTV, entregue ao símbolo do guterrismo na comunicação social, Carlos Magno, e Antena 3 (o desaforo duma rádio rock paga pelos contribuintes!);

- transformação da Lusa na agência de recados dos governantes e, desde há meses, do grupo parlamentar do PS;

- utilização a todo o vapor do poder económico e comunicacional da PT, que é uma empresa controlada pelo Governo e quase em absoluto nas mãos da liderança do PS, nomeadamente de Coelho: a PT é dona do "Diário de Notícias", "Jornal de Notícias", TSF (rádio muito permeável à influência de Coelho), NTV e SIC Notícias, "24 Horas" e "Tal & Qual";

- neutralização da informação desfavorável em canais privados através de acordos especiais e ligações económicas aos grupos proprietários: caso da SIC e do Euronotícias;

- tentativa de aliciamento de jornalistas através de almoços grátis, viagens, etc., para os colocar debaixo da sua alçada;

- criação do maior parque de assessores de imprensa que já existiu em Portugal, à semelhança, aliás, do que fez o Partido Trabalhista britânico;

- controlo da agenda política através de contactos privilegiados com os meios mais capazes de a estabelecer, em especial a TSF (telefonemas diários de Coelho a "conversar" sobre os temas do dia);

- atenção extrema ao fluxo informativo diário de forma a agir de imediato para evitar estragos à imagem governativa; por exemplo, os ministros e dirigentes do PS chegam ao ponto de reagirem a notícias ainda antes de elas acontecerem;

- criação de manobras de diversão informativas: dar cachas a jornais para neutralizar algum caso desfavorável que esteja na ribalta, substituindo-o;

- abertura ou fecho da torneira da publicidade do aparelho de Estado (são milhões de contos) como forma de condicionar a livre opinião dos órgãos de informação.

Parece este quadro demasiado negro ao leitor? Afinal, dirá, vivemos numa democracia. E tem razão. Acontece que a União Nacional Rosa é invisível. Talvez haja jornalistas que um dia contem o sufoco em que viveram, as pressões que sofreram (não poderiam antes para não perderem empregos) e então entender-se-á como os tentáculos da propaganda governamental condicionaram fortemente a liberdade de informar. Não foi fácil ser jornalista livre e independente nestes seis anos.

Um exemplo. Vem do interior, da "província", onde a economia dos órgãos de informação é mais frágil e onde o polvo actua com mais desfaçatez para tentar controlar as rádios locais.

O polvo pretende também conquistar ou destruir as rádios privadas que não lhe fazem o jogo. E para isso utiliza o aparelho de Estado, como fazia a União Nacional de Caetano. Um artigo do PÚBLICO dava notícia do maravilhoso trabalho de vigilância do Instituto de Comunicação Social (ICS) sobre as rádios locais ("ICS investiga rádios locais do Centro", 20-11-01) - mas só contava metade da estória.

Recentemente, quatro rádios privadas do Centro do país interpuseram recurso contra processos do ICS que pretendiam silenciá-las por alegadas irregularidades. O juiz analisou o recurso com referência a uma delas, a Flor do Éter, de Penacova. A rádio ganhou o recurso. A sentença do juiz de Penacova revela a face mais negra do aparelho de União Nacional Rosa posta a funcionar, neste caso, pelo secretário de Estado Arons de Carvalho. É uma sentença lapidar e teria merecido na altura uma ampla divulgação.

Ficou provado em tribunal que os fiscais do ICS recorreram a processos ilegais e inconstitucionais para tentar apanhar a rádio nas malhas da lei. Os fiscais ocultaram deliberadamente a sua função para obter informações, o que me fez lembrar o que faziam os pides. O juiz compara os processos dos inspectores do ICS à "recolha de confissões para processos da Idade Média", à "prática seguida, há séculos, pelo inspector Torquemada" e ao "tipo de intervenção" de "outros governos", isto é, os fascistas. O juiz afirma que o instrutor do processo adoptou uma postura de "características autoritaristas e persecutórias, revanchistas mesmo", "com base num inquérito algo persecutório".

O libelo do juiz de Penacova - um documento para a história da defesa da liberdade de informação em Portugal, que espero não escape à atenção dos nossos activos deontólogos da liberdade jornalística - acusa ainda o poder central de não entender o papel da rádio na informação local, de ser centralista e de, em relação àquele operador de rádio, ter tentado "silenciá-lo ou reprimi-lo", o que "é perigoso".

Silenciar e reprimir: eis o que a União Nacional Rosa tenta, e às vezes consegue, em plena democracia.