Eduardo Cintra Torres

Em Busca de Citações nos Sopranos (2)


No segundo episódio da terceira série (RTP2, 08/10), Tony Soprano chega a casa e a filha vê no televisor o filme "Public Enemy", realizado por William Wellman (1931), com James Cagney no papel de "gangster".

Tony fica contente por julgar que ela também gosta do filme. Mas Meadow não vê "Public Enemy" pela mesma razão que o pai: ele identifica-se com o "gangster", ela tem de preparar um trabalho para a faculdade (a cadeira para a qual a jovem trabalha chama-se "Imagens de Autopromoção Capitalista na Época do Studio System", uma boa ideia para o currículo de qualquer universidade...).

A citação de "Public Enemy" é a relação com o cinema de qualidade: os Sopranos são o "Public Enemy" de hoje, há uma filiação da série no filme tal como nos dois objectos há uma relação entre filho "gangster" e sua mãe. E, para complicar o caso, a cassete chega a casa pela mão da filha Soprano que não se identifica com o pai... e logo ali nasce mais um conflito com ele.

A cassete fica por lá; nós veremos, com Tony Soprano, algumas cenas ao longo do episódio. A citação dura vários minutos no total. Vemos a cena em que James Cagney dá duas chapadas ao dono dum bar (Soprano tem a mesma "profissão" que Cagney); ou aquela em que Cagney esfrega uma toranja na cara da namorada (Tony ri-se da insolência, sente saudade de um tempo que já não é seu); ou a cena do tiroteio à chuva ("não sou assim tão duro", diz Cagney alvejado, e Tony sabe que também não é).

Mas a principal citação de "Public Enemy" nos Sopranos relaciona-se com a mãe do "gangster". Neste mesmo episódio, Livia Soprano, a mãe de Tony, morre. As duas mães são totalmente diferentes. A de Cagney é pura e simples, a Soprano é uma mulher desprezível, mafiosa, que trai o próprio filho (denunciá-lo-ia, provavelmente, se chegasse a depor em tribunal).

Depois da cerimónia fúnebre da mãe, Tony Soprano põe-se a ver o final de "Public Enemy": Cagney regressará finalmente a casa, onde, qual filho pródigo (citação da Bíblia), o esperam o irmão e a mãe, a qual, por querer salvá-lo, gosta mais do filho mau que do filho bom (idem).

Na última cena do filme (e a última do episódio dos Sopranos) James Cagney está prestes a regressar. Numa bela cena trágica, a mãe está em cima, no quarto, fazendo a cama de lavado, enquanto o filho mais novo abre a porta - e o irmão, Cagney, cai-lhe pela casa dentro, morto por "gangsters" concorrentes.

Da mesma forma que o filme altera o final da história do filho pródigo, nos Sopranos há uma inversão da citação do filme: Tony odeia a mãe, desejou-lhe a morte; aqui, quem morre é a mãe, não o filho. E por isso quando Tony chora ao ver o final de "Public Enemy" (a morte de Cagney), ele, que não verteu uma lágrima pela mãe, chora por ter pena de Cagney, isto é, por ter pena de si mesmo. A citação introduz o Destino: Tony vê a sua própria morte, que poderá ocorrer, quem sabe, num próximo episódio. A citação criou a situação trágica.

As citações introduzem um segundo nível de leitura. Os Sopranos podem ser vistos por mais do que um prisma. É o que nos diz uma cena (1º episódio, RTP2, 1/10) em que o filho Soprano narra com dificuldade num poema de Robert Frost, que tem de estudar para a escola: "Stopping By Woods on a Snowy Evening", de 1923. Surge a irmã, que o ajuda a interpretar (a neve significa a morte, etc.), isto é: a fazer a análise literária do poema. Há uma mensagem implícita: as coisas nunca são apenas o que são, dizem mais do que dizem à superfície - assim é o poema, assim são os Sopranos. A lição da irmã serve apenas para dizer ao espectador que há outros níveis de leitura no argumento dos próprios Sopranos.

No terceiro episódio (RTP2, 15/10), a citação literária regressou de forma extraordinária: ao fim de três anos de visitas à psiquiatra, descobre-se finalmente a razão dos desmaios de Tony Soprano - a infância, claro. Tony desmaia quando mexe em carne, em alusão à cena a que assistiu em criança, quando o pai cortou o dedo mindinho ao talhante Satriale que falhou um pagamento à mafia. Nessa noite, o pequeno Tony desmaia quando vê a carne do talhante sendo trinchada à mesa do jantar e, ao mesmo tempo, o pai corteja sexualmente a mãe enquanto cantarola "All of Me", uma canção dos anos 30 que refere metaforicamente o desejo de decepamento de mais membros do que um dedo mindinho: "Why not take all of me? (...) Take my arms..."

Para explicar a Tony como tudo se filia na infância, a drª Melfi recorre ao exemplo de Marcel Proust: "Em Busca do Tempo Perdido", sete volumes de reminiscências do passado que começam quando o sabor e o cheiro de uma madalena molhada no chá que a mãe lhe deu trazem à memória a dentada que em criança dava numa madalena no quarto da tia Léonie. Ao recordar o sabor, "a lembrança apareceu-me num golpe", escreveu Proust.

Aconteceu o mesmo a Tony? Ele, ao abrir o frigorífico da mãe morta, encontra lá a carne e os enchidos enviados pelo talhante Satriale (o mesmo da infância, que ficou sem o mindinho). E é precisamente depois de dar a primeira dentada numa fatia de "cappicola" que Tony Soprano regressa ao passado. Da delicada madalena ao enchido italiano. Mundos diferentes.

Os Sopranos citam Proust que cita a sua memória aparentemente perdida... Proust, que foi o mestre da citação oblíqua, da citação como "leitmotiv", como sinal de estrutura interna da obra e que serve para o narrador se esconder por trás do autor citado!

(Proust usou citações de duas obras de Racine, retirou-as do contexto e fez delas um "leitmotiv" para assinalar no romance os temas do disfarce, da dissimulação e da inversão sexual. Tal como essas citações em Proust escondem outro texto, nos Sopranos, depois da drª Melfi lhe explicar as madalenas de Proust, Tony diz-lhe: "This sounds very gay. I hope you are not saying that." "No", responde a psiquiatra - a história não se repete.)

Memória involuntária: se em Proust a reminiscência inicia o narrador numa viagem entre uma vida inútil e a salvação pela arte, ao prosaico Tony coloca-o entre a vida brutal que leva e a vida sem violência que intimamente desejaria.

É o discurso no discurso. A citação da citação da citação. Uma outra verdade na profundidade insuspeitada. Um subtexto literário nas imagens escritas de Proust e nas imagens gravadas dos Sopranos. Se Proust é complexo, que dizer deste Sopranos a transbordar de citações?