Eduardo Cintra Torres

Em Busca de Citações nos Sopranos


Um dos muitos motivos que fazem de Os Sopranos uma série superior é a utilização de citações visuais, sonoras e literárias. Por vezes reduzidas apenas a alusões ou recordações, as citações sucedem-se em vertiginosa torrente (RTP2, segundas-feiras à noite).

A apresentação da série está cheia de citações ou quase-citações. Logo na primeira imagem, o automóvel de Tony Soprano sai do Holland Tunnel, que liga Manhattan a New Jersey. A mensagem é clara: saímos de Manhattan, do lugar-comum urbano das outras séries de "gangsters". No espelho retrovisor as torres gémeas do World Trade Center dizem-nos que estaremos igualmente longe do capitalismo apressado e vistoso. E, a seguir, pela janela do condutor, surge-nos a Estátua da Liberdade, o símbolo dos emigrantes de todo o mundo, entre os quais milhões de italianos, que arribaram às costas atlânticas da América. Mas a Liberdade está de costas, vista do interior da América, não do lado vulgar, o do oceano, para mais uma vez se rejeitar o lugar-comum.

Em 33 segundos de "trailer" ficamos a saber que estes "gangsters" (logo vemos Tony Soprano conduzindo o carro, de charuto na boca) estão firmemente implantados no terreno.

Até terminarem as legendas da longa apresentação (90 segundos), sucedem-se as imagens tomadas, todas elas, de dentro do carro de Tony Soprano: a série assume o ponto de vista da família italo-americana e os espectadores são levados desde o início a assumi-lo. Nova Iorque vai-se afastando e entramos nos subúrbios de Nova Iorque no estado de New Jersey, nas suas ruas de pequenas lojas e pequenas casas à beira da estrada. A apresentação termina quando Tony sai do automóvel (nós continuamos dentro) na sua grande vivenda familiar.

Serão estas referências citações? São. Os provérbios, os ditos, as alusões e as recordações são citações ou quase-citações que já entraram na linguagem comum e perderam o referencial de origem. Quando falamos da "voz do que clama no deserto" já não nos referimos a Isaías, 40-3, e quando nos irritamos com os "pobres de espírito" e lhes desejamos que sejam bem-aventurados, já não relacionamos a frase com o sermão da montanha (Mateus, 5-3). São já memórias - mas o que é a memória senão um amalgamado de citações que guardamos para sermos nós mesmos? Para nos relacionarmos com os outros e nos identificarmos? O que distingue o Homem dos outros animais é a cultura, "alta" ou "baixa", e a citação é um estado natural da cultura.

Algumas pessoas, nomeadamente jornalistas, desdenham do recurso a citações nos textos que não são os deles, provavelmente porque nem se dão conta das inúmeras citações que pontuam os seus próprios artigos e a cultura popular (TV, cinema, música) que tanto apreciam e de que até vangloriam a profundidade ou a esperteza. O desdém é estranho porque o jornalismo abraça a arte de bem citar - o Presidente disse, o jogador afirmou, a testemunha jurou, o juiz declarou... As citações do e no quotidiano nunca acabam e servem para nos situar no mundo.

É certo que o recurso às citações autoconscientes pode criar um sentimento duplo de atracção e repulsa. O mesmo Ralph Waldo Emerson (1803-1882) que escreveu "Cada homem é um mímico e vive de empréstimos, a vida é teatral e a literatura uma citação" escreveu no seu diário "Detesto citações". Tudo depende de como são usadas e de como são lidas e de como é vista pelo leitor a sua utilização.

As citações eruditas (e há muitas em Os Sopranos) têm, também, entre outros, os objectivos de enriquecer diálogo e argumento e de satisfazer o espectador. Se desde há milénios a citação é apanágio de pedantismo, como Cícero já referia, foi também há séculos, com Montaigne, que ela se libertou da função pública de autoridade. Com esse escritor francês do século XVI (o primeiro moderno?), com Chateaubriand (1768-1848) e com Marcel Proust (1871-1922), a citação deixou de ser um obstáculo à palavra pessoal e pôde ser um instrumento privilegiado da afirmação do eu, um traço da sua originalidade. A citação cria uma coisa nova.

O auge da homenagem à citação ocorre em Walter Benjamin (1892-1940), para quem o seu melhor livro seria todo composto por citações: "A escrita consiste amplamente de citações - a mais louca técnica de mosaico imaginável." Coleccionador de citações, Benjamin achava que elas eram "fragmentos de pensamento" com uma "força transcendente": "as citações nas minhas obras são como ladrões de estrada que fazem um ataque armado e aliviam um ocioso das suas convicções".

Um outro citador, Igor Stravinski, pôs a questão em termos brutais: "Um bom compositor não imita; rouba." A música, a pintura, o cinema, a televisão, toda a cultura erudita ou de massas cita por prazer, homenagem, necessidade ou até sem saber. Toda a criação remete para a criação anterior e para a História. Por isso cita, por isso "rouba".

No caso de Os Sopranos, o criador (David Chase) e os outros autores dos argumentos sabem muito bem por que citam e o que roubam, como atesta a inserção de imensos fragmentos de cultura popular e cultura erudita, transformados em motivo de atracção do espectador, que se revê nele como indivíduo inserido na história, na cultura e na sociedade. Os argumentos de Os Sopranos roubam citações da melhor maneira, como Montaigne, Proust ou Benjamin: para que, no momento em que o citado e o citador se juntam, dessa intertextualidade - a presença efectiva de um texto (ou imagem) noutro - se crie uma terceira voz.

As citações e quase-citações sucedem-se: a presença de Frank Sinatra Jr. numa cena de jogatina com mafiosos, identificado como "Mr. Sinatra" para provocar a reminiscência do pai e das suas ligações nos anos 50 e 60 aos chefes da Mafia americana; uma canção doutro italo-americano, Tony Bennett, na banda sonora; as referências explícitas pelos personagens à trilogia que Os Sopranos parecem continuar (O Padrinho); o corvo negro que surge à janela quando Christopher faz o seu juramento de "gangster" e a namorada, para o acalmar - e para criar um gozo, numa segunda leitura, com a própria citação -, diz que o corvo "só" representaria a morte se tivesse entrado em casa (como entra na biblioteca do poema de Edgar Allan Poe); as referências num mesmo episódio a dois filmes passados na Itália antiga ("Gladiador" e "Spartacus") - dois filmes, duas gerações de cinema, de televisão, de mafiosos...

As citações culturais infiltram-se n'Os Sopranos com uma qualidade literária inexcedível.

Este artigo tem continuação e termo na próxima segunda-feira.