Eduardo Cintra Torres

A Mil Anos dos Sopranos


Os Sopranos resultam duma singular conjugação de elementos. O criador, David Chase, é um argumentista com muita experiência. Propôs os Sopranos a duas grandes cadeias norte-americanas; rejeitado, o projecto foi retomado pela estação de cabo HBO.
Os Sopranos puderam aí desenvolver qualidades impossíveis em séries das "networks". Não só por serem outros os limites de autocensura na violência e linguagem mas também porque a construção dos episódios pode ser mais e ousada. Mesmo a escolha do actor principal, James Gandolfini, não teve de passar pelo crivo dos lugares-comuns estéticos do sistema mediático americano: numa "network" nunca um careca feio e barrigudo teria o papel principal, mesmo que a sua composição resultasse poderosa, como é o caso.
O sucesso dos Sopranos foi tão grande que a série se tornou uma âncora da HBO até hoje, quando vai no terceiro ano (RTP2, segundas).
Como aconteceria noutros países, os media americanos verificam agora como o talento de David Chase foi desperdiçado durante anos. Mas, nos EUA, os Sopranos existem; noutros sistemas mediáticos a espera resultaria em vazio e desespero.
Mesmo que Chase se ficasse por aqui, teria direito à glória no universo da ficção televisiva mundial. Os Sopranos são uma de três ou quatro séries que podem aspirar ao galardão informal de melhor série televisiva de sempre.
A descrição de um família mafiosa na actualidade é tão bem construída e desenvolvida que um crítico americano pôde escrever que os Sopranos são o verdadeiro terceiro painel do tríptico do Padrinho de Francis Ford Coppola. Outro crítico, vendo sequencialmente os episódios de uma época d'Os Sopranos, filiou a série nos "mega-filmes" como Greed de Eric von Stroheim (1925), que na versão do realizador deveria ter oito horas.
Mas as comparações com o cinema são arriscadas. A série é, desde logo,... uma série de TV. Desenvolve-se semanalmente, cria cumplicidades com o espectador diferentes das do cinema. Apesar duma coincidência de argumento com o filme Analyze This (de Harold Ramis, 1999), com Robert de Niro, não teria sentido comparar os dois objectos.
A estratégia ficcional de Chase é soberba: a série assenta no quotidiano doméstico da família Soprano - família de pais e filhos, a normal família americana dos subúrbios - e é com, contra, em e sem esse quotidiano que se desenvolvem as contradições, as tensões, os conflitos resultantes da realidade mafiosa. A intimidade do espectador com os Sopranos submete-o depois à brutalidade quase insuportável de cenas como aquela em que Tony mata a sangue-frio um jovem aspirante a mafioso.
Os Sopranos podem viver do crime, extorsão e ilegalidade, mas quando um polícia honesto multa Tony por excesso de velocidade, a mulher, que sabe muito bem donde vem o dinheiro para a casa, comenta a seu lado que os polícias bem podiam era andar atrás dos traficantes de droga.
Esta dualidade faz dos Sopranos uma série sem igual. Os conflitos dramáticos ou cómicos estruturam a série e cada episódio e pequeno detalhe como aquele.
O conflito fundamental divide (e ao mesmo tempo une) os personagens entre duas famílias: a nuclear, pai, mãe, filho e filha, e a outra, a Família mafiosa. Este conflito não só fundamenta o argumento como caracteriza o próprio objecto televisivo: ele é também o antagonismo que faz da série uma tensão constante entre a vulgar sitcom familiar e o seu contrário, a série violenta de polícias e ladrões. E entre a comédia e a tragédia. A arte dos Sopranos está em manter esta tensão e em simultâneo resolver a contradição entre os dois géneros seguindo uma terceira via, a tragicomédia. Os Sopranos são a primeira série de grande êxito simultaneamente popular e artístico da TV pós-moderna.
A partir do conflito fundamental - que é do argumento e do domínio da reflexão sobre a própria criatividade do meio - desenvolvem-se na série outras tensões bipolares: entre a normalidade e o desvio; entre pais integrados no sistema mafioso e filhos que querem a vida dos colegas e amigos; entre o silêncio da omertà e o desejo contemporâneo de comunicar; entre a integração na América e a referência ao distante registo cultural italiano; entre passado e presente mafiosos; entre Nova York e New Jersey.
Do conflito essencial da série (família versus "família") brota outra bipolaridade estruturante do argumento: o conflito interior vivido por Tony Soprano. Ele sofre de desmaios psíquicos e sente-se obrigado a consultar uma psiquiatra. As cenas no consultório da Dra Melfi criam expectativa dalguma "verdade" escondida e conflitos adicionais entre o gangster à antiga sem dúvidas, tipo James Cagney, e o gansgter do século XXI e na própria médica, dividida entre o medo e a atracção pelo que o mafioso representa de desafio à por vezes insuportável normalidade da vida comum.
Para Chase, situar os Sopranos em New Jersey, à vista de Nova York mas numa malha urbana e social muito diferente, era fulcral para caracterizar personagens e criar o ambiente. Como em Blue Velvet (1986), de David Lynch, a superfície da terra parece calma e ordeira, mas há, como em Arsenic and Old Lace (1944), de Frank Capra, muitos cadáveres nas caves. Estamos, assim, na subúrbia, com o criminoso caseiro que nos passa ao lado ou janta no mesmo restaurante, estamos longe do crime de alto gabarito de Nova York, Chicago, L.A. ou Las Vegas.
Os Sopranos são servidos por um conjunto de actores brilhantes, por um verismo extraordinário no ambiente de New Jersey (é um dos principais cuidados de Chase, que recusou a hipótese de "reconstruir" New Jersey em exteriores de Nova York ou L.A.), por uma banda sonora cuidada, por um apuro incrível nas nuances dos diálogos, para que o não-dito seja tanto como o dito, e, finalmente, por uma montagem de supremo rigor.
A pós-produção é mais demorada do que as filmagens. O empenho de Chase na montagem é vital para o resultado final. Os conflitos acima referidos, que se arrastam por toda a série ou irrompem num episódio, são sublinhados pelas técnicas de montagem dos enredos criadas pelo cinema e pela TV: montagem paralela, paralela assimétrica, tangente, secante e circular! É também pela montagem que se cria com esta série superior um género a que se pode chamar tragicomédia doméstica (uma "sit-tragic-com"). A ficção televisiva portuguesa está tão distante desta série - tão, tão distante - que nos sentimos esmagados se nos acontece fazermos uma legítima e urgente comparação.
Este artigo completa-se com mais dois artigos sobre Os Sopranos, o primeiro a publicar na quinta-feira.