Eduardo Cintra Torres

Serviço, Blá, Blá, Público, Blá, Blá


O debate sobre serviço público de televisão em Portugal é endémico como a brucelose. Vive adormecido na população-alvo até rebentar em surtos esporádicos. Tivemos agora um surto desta "público-serviçose". A culpa foi do Sindicato dos Jornalistas, responsável por uma declaração sobre o serviço público de TV. O documento, interessante, avança propostas concretas em vez das generalidades e banalidades habituais.
Mas, tratando-se de um documento político, foi um erro que tivesse emanado dum sindicato: os sindicatos deveriam evitar esse tipo de intervenção. Para desgraça dos trabalhadores, os sindicatos portugueses não são sindicais. Por isso, descuram ou falham o que devia ser o seu objectivo primordial, os interesses dos associados.
O resultado foi o que se viu: na sessão na Casa da Imprensa dedicada a debater o documento, a direcção do sindicato foi confrontada por uma força de assalto de trabalhadores da RTP. A sessão acabou à beira da peixeirada e neste absurdo completo que é trabalhadores atacando a organização sindical e defendendo uma administração que os despreza!
Mas isso são detalhes. Este artigo serve para dizer o seguinte: continuar a debater o serviço público de TV com o Governo que temos é uma palhaçada. O Governo está-se nas tintas para o serviço público e para a programação de serviço público.
Provas? Passaram seis anos, só isso interessa. Seis anos depois, eu não acredito em nenhuma declaração de intenções do Governo sobre o "futuro" em matéria de televisão pública.
O futuro serve para políticos enganarem os cidadãos sem que estes lhes possam chamar mentirosos: ao falarem duma coisa que não existe - o futuro - podem dizer o que lhes apetecer, podem prometer o melhor dos mundos - quem os vai contrariar? Quem ousaria interromper a descrição dum belo sonho?
Podem os governantes e os chefes da RTP dizer que agora é que "vai ser", agora é que a RTP entra nos eixos; agora é que "vão fazer" "programas populares de qualidade"; podem cortar a "indemnização compensatória" (mas que nome absurdo!) e dizer que a aumentam para o ano; podem dizer que acham muito bem o fim da publicidade na RTP, mas que não é possível, talvez depois; podem dizer que a taxa era excelente, mas que agora não é possível repô-la; etc.
Na sessão na Casa da Imprensa ouvi discursos do ministro da tutela, Augusto Santos Silva, e do director-geral da RTP, Emídio Rangel, que me deixaram mal-disposto.
O ministro, que é astuto, trouxe pilares de argumentação como polvos embrulhados nas mãos. Andou à volta de ideias gerais que já conhecemos há anos e anos. Tudo muito bonito, bem falado, sim senhor, o homem fala bem, mas nada de nada de nada. Os olhos só lhe brilharam quando disse que quer "programação popular de qualidade", aumentando as audiências e sem descer no "gosto". Tudo ao mesmo tempo - no futuro. É o mesmo que vem dizendo desde um passado longínquo Arons de Carvalho, o homem que realmente manda na tutela da RTP e que, desde 1974, há mais tempo ocupa essa função.
O discurso de Rangel, todo ele marcado pela palavra "decisivo" (a RTP é decisiva! Portugal é decisivo! Mais dinheiro do povo para a RTP é decisivo! O momento - quer dizer, ele, Rangel - é decisivo!), teve contornos de um populismo reaccionário ainda pouco burilado, que era afinal de esperar de quem mudou de camisola à pressa. Na verdade, defender a necessidade de mais bagulho para a RTP porque os canais privados poderão, eventualmente, ficar em mãos estrangeiras e então deixam de difundir os valores pátrios da "cultura nacional", que diabo, não lembrava nem ao António Ferro. Mas o Governo gostou de ouvir isto porque o que interessa é manter a esperança no "futuro".
Tenho pena que o documento do sindicato não tenha sido subscrito por outra entidade ou grupo de estudo e noutra ocasião (há uns anos atrás). Nesta altura, é apenas mais um. O Governo não quer saber para nada de propostas. O que o Governo quer não se revela nos discursos sobre "serviço público" e sobre o futuro mas antes no seu passado e na natureza do poder e das pessoas que o ocupam. O que o poder quer é, como digo há anos, mascarar a sua acção neste domínio para manter tudo como está, para manter o controlo da RTP, para a poder usar em tempo de eleições, para poder sacar mais dinheiro dos impostos que alimentem o vórtice duma empresa que está morta, descontrolada, sem alma e sem razão e que está a saque (o programa de João Baião custa, diz-se à porta fechada, um milhão de contos! Quem ficou com eles?).
Rangel sempre foi favorável ao PS enquanto esteve na SIC (o que não tem problema nenhum, a empresa é privada e livre nas suas opções editoriais); foi escolhido para a RTP por isso (e também pelas suas qualidades de congregador de entusiasmos e de elevador de audiências), para que a RTP, agora que caminhamos para eleições, tenha um pouco mais de público e assim se atenue o escândalo financeiro da empresa.
Já não há pachorra para este debate. Fomentar este tipo de iniciativas com ideias generosas, como fez o Sindicato dos Jornalistas, só serve para o Governo embrulhar as suas verdadeiras intenções de manter a RTP no escândalo que é e para manter o controlo político sobre a empresa.
E, enquanto os ingénuos como eu debatem o "serviço público", há pessoas concretas a levarem para casa dinheiros de estranhos e inacreditáveis contratos de produção ou salários ofensivos tendo em conta a situação da empresa; e há outras pessoas a pensarem nas indemnizações que poderão levar se forem demitidas dos seus cargos de direcção ou administração. Menciono este tema do dinheiro porque ele também contribui poderosamente para o rumo que as coisas levam, porque há gente que defende o "serviço público", isto é, a RTP, por causa dos salários e das prebendas que ganha à conta dos nossos impostos. É tudo uma vergonha.