Eduardo Cintra Torres

O Poeta do "Remorso Militante"


O título "Um Homem do Tamanho do Século" pretende definir José Gomes Ferreira na dupla dimensão do homem nascido em 1900 que atravessa o século para ser o patriarca dos escritores pós-25 de Abril e a da importância da sua obra.

Mas "a poesia foi a viagem do século XX em mim", escreveu ele. O que conta, portanto, é a poesia. O século transformado em Eu. O mundo ruminado por dentro. Estava esta atitude fundamental de artista espelhada no teledocumentário realizado por António Cunha para celebrar o poeta (1900-1985)?

O teledocumentário (RTP2, Artes & Letras, 14/10) avança, como é habitual, encadeando os acontecimentos, enquadrando-os com depoimentos e documentos escritos e visuais. "Um Homem do Tamanho do Século" distinguiu-se porque soube usar com eficácia e correcção o método vulgar de a TV contar estórias culturais.

Do Porto natal, do abraço a Lisboa para toda a vida, do pai republicano, do professor que profetizou "hás-de ser jornalista" sem saber que o miúdo viria a ser o poeta que comentava notícias, até à alegria do regresso democrático em 1974, nada ficou por contar.

Houve tempo para, numa viagem paralela, revelar o compositor de quem César Viana destacou três fados compostos à maneira moderna e sem os rodriguinhos que depois marcaram a abordagem da música popular pelos compositores eruditos.

O teledocumentário mostrava-o, sem o dizer, muito marcado pela forma de vida da República - cafés, polémicas, vocabulário, retórica, maneira de estar, mais até do que a expressão política.

É, aliás, sob a ditadura que Gomes Ferreira se torna um novo poeta. Na noite de 8 de Maio de 1931, escreveu depois, "encontrei finalmente a expressão autêntica do poeta autêntico há tanto procurada". Para trás ficam poemas em que já não se revia, composição musical, advocacia e diplomacia, ideais republicanos do pai. Começa uma expressão poética para o resto da vida. O teledocumentário dá disso pistas em declarações de depoimentos seus.

"A maioria das minhas poesias estava registada em diários." De facto, parte da sua poesia só se apreende completamente conhecendo-se o acontecimento pessoal, nacional ou internacional sobre o qual ele reflecte poeticamente: há um duplo sentido - o que o poema diz e a propósito de que acontecimento o poeta o diz. Gomes Ferreira acrescentou a muitos poemas uma frase ou comentário indicando o acontecimento motivador da escrita. Sem a explicação, alguns poemas poderiam parecer uma actualizada autoflagelação romântica (com moderno e eficaz recurso a figuras de estilo antigas, agora renovadas ao som da telegrafia, do título do jornal e da legenda de filme e num "staccato" de substantivos que adjectivam outros substantivos).

E a declaração sobre a sua "teoria poética do grito"? "Berrar era o suficiente para mim. Berrar era o suficiente para salvar o mundo. Era uma ingenuidade poética. Os poetas são ingénuos, supõem que só com a suas palavras conseguem salvar o mundo." O grito (palavra repetida na sua poesia) transforma-se neste poeta-das-notícias-e-jornalista-das-emoções em poesia militante, cheia de "slogans" telegráficos.

Quase a terminar o documentário, ouvimo-lo dizer: "Eu sou romântico." O teledocumentário não abordou o tema. Romântico, este antifascista e neo-realista?! Todavia, o seu vocabulário, curto, é o da poesia tradicional (sol, lua, árvore, flor, pedra, lágrima, tristeza, etc.) e a sua poesia uma luta entre sentimento e razão, objectividade do mundo e subjectividade do poeta, entre o Eu-Eu e os Eu-Outros.

Bem ilustrado com imagens de arquivos, o teledocumentário evitou a leitura seca de textos e poemas encenando-os na praia ou no café, na rua ou em casa. E, com poucos mas acertados depoimentos, percorreu Gomes Ferreira na vida e na arte.

Mas, no fim, depois de o verem ao lado de Vasco Gonçalves no Congresso dos Escritores de 1975, os espectadores poderiam convencer-se de que Gomes Ferreira foi um homem de convicções lineares e certezas políticas e estéticas. Não houve qualquer indício do que é porventura a maior grandeza do artista: a de questionar a todo o momento a si mesmo e ao mundo e à sua luta poética por "repúblicas impossíveis".

Nem o texto nem os depoimentos escolhidos referiram a constante Dúvida da sua poesia, ao ser dividido, à reflexão poética sobre o seu lugar no mundo e na arte.

A palavra Remorso aparece em 19 dos 276 poemas do período 1931-45 - mas, nomeado ou não, o remorso é o motor de quase toda esta poesia fulcral dos seus primeiros 15 anos (e "quinze anos são uma etapa decisiva do tempo dos homens", escreveu Tácito).

"Este Remorso Militante / que trago na pele e nos gritos / como a minha arma inútil de combate!" coloca o poeta entre a acção dos Outros (os militantes e os que sofrem) e a sua situação de "Aristocrata de barrete frígio", de "cobarde", de "inútil", de poeta que canta as flores e as árvores e se estende na praia de Carcavelos sofrendo a "Dor dos Outros".

Esta poesia é um "Exame de Consciência" do homem que, perante a acção do filho (preso durante meses por pertencer ao MUD Juvenil), lhe escreve cartas diariamente: ele escreve; logo, age. É uma poesia de "slogans" e de combates renovados dum Dom Quixote morto que, conforme ele referia num texto lido no teledocumentário, se juntava ao "cortejo sentado" dos conspiradores de café. A sua autodefinição de "poeta militante" pode enganar quem o não leia: poeta militante da poesia era o que ele queria dizer.

Faltou ao teledocumentário revelar esta inquietação que é, se calhar, a chave que movimenta toda a sua obra. A chave está no "primeiro" poema de 8 de Maio de 1931, lido parcialmente por João Mota no programa: "O mundo não se modifica", "as paisagens também não se transformam", "ainda por cima os homens são os homens" - mais valia ao poeta "suicidar-se por seis meses" enquanto o mundo mudava.

O que resta a este poeta do "Remorso Militante"? A escrita, a própria poesia como acção, o próprio Eu poético como motor da mudança do mundo pela poesia, a única possível perante o seu desconserto. Ele próprio o escreve, em itálico: "Quem traz o Archote / que o mundo incendeia / na noite das sebes? / És tu, Poeta. / És tu, ninguém mais." Isto é mais importante do que o neo-realismo subjacente ao teledocumentário.