Eduardo Cintra Torres

Guerra de Tipo Novo em TV de Tipo Velho


O que mudou desde 11 de Setembro nos EUA? O inimigo principal: deixou de ser geoestratégico e ideológico. O isolacionismo: perante um inimigo que ataca a "fortaleza" americana, os EUA não podem isolar-se.

A desfaçatez: a sua nova vulnerabilidade tornará difícil aos EUA actuarem de ânimo leve noutros pontos do mundo como fizeram nas últimas décadas - desaparecerá a face jingoísta do império americano.

A linguagem: o carácter do inimigo torna impossível defini-lo em relação à religião, apesar da forte componente religiosa (essencial, mas não dominante). Exemplo: George W. Bush não voltará a usar a palavra "cruzada". A necessidade duma coligação que ultrapassa a geoestratégia, a política, a ideologia, e a "nossa civilização" (ao contrário do que se tem escrito) obriga a uma linguagem desadjectivada atípica.

A face visível: Bin Laden. Personaliza o inimigo porque, entre outras coisas, tem, como Hitler, as características de um psicopata com a doença que engana toda a gente: a paranóia. É muito inteligente, racionaliza os seus actos, consegue convencer (usa a propaganda televisiva e estabelece a relação simbólica dos actos com o discurso) e tem como objectivo destruir as multidões, as massas: as Torres Gémeas de Nova Iorque eram locais de concentração de muitas pessoas, muitos "inimigos".

É um caso típico de paranóia que me lembrou o de Daniel Paul Schreber, juiz alemão e cristão protestante que, num período de lucidez entre dois de paranóia, escreveu as suas "Memórias de um Doente de Nervos", publicadas em 1903. A correlação entre religião e poder político é muito significativa na doença do juiz e em Bin Laden; idem quanto à supressão das multidões com pestes ou micróbios, isto é, guerra bacteriológica. Schreber refere a destruição de Sodoma e Gomorra (de que as Torres Gémeas foram sinónimos). Elias Canetti, que cita amplamente este caso, relaciona a doença de Schreber e a política de Hitler.

Bush tem insistido nas características do pós-11 de Setembro: "um novo tipo de guerra"; campanha longa, pedindo paciência; as operações no Afeganistão são "uma pequena parte" da campanha, que envolve acções económicas e outras; muita da informação não será passada aos media. Houve, pois, uma rapidíssima adaptação dos EUA à realidade resultante de 11 de Setembro. Dia a dia, o governo de Bush mudou de estratégia militar e política.

Perante este vento de mudança que afecta todo o mundo, pode a TV ficar na mesma? Ou deve adaptar-se-lhe, como Guy Debord quando escrevia "a desdita dos tempos obrigar-me-á, uma vez mais, a escrever de forma inovadora"?

A TV mundial foi mais lenta a perceber as mudanças do que o poder americano. Paradoxo: o "reaccionário" e "limitado" Bush foi mais "progressista" em agarrar a nova realidade do que os media, que sempre se consideram iluminados e "prà-frentex". Quando em 7 de Outubro caíram os primeiros mísseis sobre o Afeganistão, a TV ainda reagiu como se estivesse no tempo da guerra do Golfo.

A superficialidade marcou muito a informação televisiva das últimas semanas. Numa guerra "à antiga" a superficialidade corresponderia ao protótipo de conflito (e, assim, o discurso subjacente seria fornecido pelo próprio aparelho ideológico do espectador); o mesmo não sucede agora. A TV esteve à deriva, sem conteúdo.

O meio TV convida à palavra fácil, mas deveria haver direcções de informação informadas (!) e politizadas, para evitar inúmeros erros de linguagem dos redactores, para evitar deformações do sentido da campanha, para evitar exageros como o de colocar o Paquistão à beira de uma guerra civil, para evitar intervenções como a de Mário Crespo ameaçando-nos com o pânico de uma epidemia quando surgiram dois casos de carbúnculo na Florida.

Perante uma realidade multifacetada, a TV agarrou-se ao pouco que tinha à sua frente: a propaganda dos talibanistas paquistaneses, as declarações de Bin Laden e "especialistas" sem nada para dizer. Da frente militar pouco chegava, o que desespera quem tem de encher um ecrã e o tempo a passar. Vai daí, para se distinguir da rádio, a TV engana-nos com imagens de arquivo não identificadas ou repete à exaustão os mesmo 23 segundos disponibilizados pelos EUA.

Os enviados ao Paquistão começaram por se deixar levar pelas "manifs" que os talibãs organizaram "em rigoroso exclusivo"... para a TV mundial. Com os seus cartazes em inglês e uma organização espacial hollywoodesca, os talibãs enganaram repórteres durante mais de uma semana. Só no CNN vi uma reportagem, de Christina Amanpour, mostrando um concerto paquistanês com um sentido radicalmente diferente da fúria talibanesca que outros canais propagaram. Diferença? Amanpour foi à procura, não esperou pela "novidade".

Nesta guerra quase sem novidades é muito perigoso que a informação se agarre às poucas que lhe são disponibilizadas e faça generalizações a partir delas.

Houve também o erro - propositado? - de rádios e televisões apresentarem a campanha como uma "coisa dos americanos". Ao chamar à sua emissão "América ao Ataque", a RTP induziu os seus espectadores neste clamoroso erro informativo. Há mais países directamente envolvidos, a ONU (o mundo inteiro, portanto!) sancionou o direito de resposta e a NATO invocou o artigo 5º, isto é, Portugal também foi atacado em 11 de Setembro (o facto de o nosso primeiro-ministro só ter percebido isso duas semanas depois não justifica; é lá com ele; nós, os outros portugueses, temos de ser mais rápidos a compreender e a agir).

O que poderia a TV ter feito mais cedo? Na ausência de novidades, era importante dar fundo, criar o quadro do novo tipo de conflito. Nada fácil: é preciso ler, estudar, procurar especialistas e que os repórteres nos locais balancem a novidade disponível com reportagens iluminadoras de mundos desconhecidos.

Os correspondentes, depois do primeiro embate, começaram a fazê-lo. E, no final da semana, já a TV recuperava o atraso e apresentava noticiários de qualidade. Se a melhoria foi geral, destacou-se o noticiário da RTP1 na quarta-feira, com bom ritmo, muita informação própria e tentativas de explicação acertadas. A óbvia necessidade de materiais de fundo - incluindo grandes reportagens e teledocumentários - começou a ser colmatada: no mesmo dia a SIC Notícias mostrou um segmento interessante de 60 Minutes sobre a televisão do Qatar Al-Jazira e a TVI mostrou as já famosas imagens das execuções talibanescas no Estádio de Cabul.