Eduardo Cintra Torres

Três Sinais dos Tempos em Ritmo Televisivo


Herman José teve a visita da vocalista pop Bonny Tyler (SIC, 30/9). Depois da conversinha, convidou-a a cantar. Ela, então, chama a atenção dos técnicos para o microfone que tinha na mão. Como quem diz: não se esqueçam disto.

Ela não pretendia que ligassem o microfone, que já estava ligado, mas precisamente o contrário: que o desligassem, pois ela passava a simular que cantava, no habitual "play-back".

Eis um paradoxo dos tempos modernos. Uma pessoa é convidada para um programa porque é cantora; mas pede que desliguem o microfone porque não vai cantar, apenas fingir. Paradoxo adicional: tendo em conta o material e os intérpretes, na maior parte dos casos é melhor assim.

Depois de marcar golo contra o Vitória de Guimarães (SporTV, 1/10), Beto, do Sporting, repetiu o ritual de correr um pouco pelo estádio até ser "apanhado" pelos colegas. O que esteve diferente foi que o jogador olhou para uma câmara de TV no relvado e apontou o indicador para "nós": o futebolista tornou consciente a presença da TV no relvado e informou-nos de que estava consciente dessa presença.

Este detalhe comportamental é um sinal de que o futebol se joga em primeiro lugar para a televisão; mas, sendo os jogadores também actores, simulam ignorar a presença das câmaras para criar um verismo na representação desportiva. O dia chegará em que os futebolistas passarão pelo Actor's Studio antes dos treinos.

Em 24 horas, os telespectadores puderam ver dois novos telefilmes: "A Viagem" (RTP2, 29/9) e "Anjo Caído" (SIC, 30/9). Puderam, mas poucos o fizeram. O da SIC teve 613.200 espectadores e o da RTP apenas 109.300, nada que se compare às audiências que obtêm diariamente telenovelas e outros produtos populares.

Haverá uma tendência para os espectadores se afastarem de programas que exigem uma atenção contínua durante um "longo" período, uma hora, por exemplo? Enquanto novelas e outros programas de entretenimento são construídos de forma a que a atenção do espectador possa desviar-se para o seu quotidiano familiar ou até para outros programas, através do "zapping", os telefilmes descendem do cinema, "antiquado" e "desajustado" da TV; implicam contínua atenção. "Anjo Caído" tinha bastantes cenas de concepção visual: era preciso ver, não chegava "ouvir" televisão.

É outro sinal dos tempos que os programas mais vistos sejam concebidos como pano de fundo para a vida social dos espectadores e não como objecto destinado a recolher a atenção exclusiva de cada um. Os programas actuais dividem-se em três categorias de acordo com a atenção (ou forma social de ver) que requerem:

1. Atenção individual, exigente e contínua (cinema, telefilmes, teledocumentários)

2. Atenção partilhada semiexigente (programas fragmentados, como os noticiários)

3. Atenção partilhada não exigente ("talk-shows", telenovelas, concursos, "reality-shows")

Antecipando-me à análise apocalíptica deste terceiro tipo, apresso-me a dizer que ele não traduz uma evolução negativa da capacidade de atenção dos espectadores, mas é antes uma nova etapa da relação entre eles e a TV: a existência de programas que requerem apenas uma atenção partilhada não exigente significa uma adaptação mútua da programação e e do espectador no sentido de integrar a TV no quotidiano, na vida social e no tipo de interacção habitual das pessoas, a conversa, que é por definição uma sucessão "ilógica" de temas.

Só se e quando os espectadores desejarem de novo ver TV com atenção individual, exigente e contínua, os telefilmes voltarão a ter audiências mais expressivas.

Os telefilmes do último fim-de-semana de Setembro mereciam atenção. Os ambientes não poderiam ser mais diversos: no da RTP Açores a habitual metáfora da viagem permitia à personagem principal reencontrar-se e encontrar um rumo de vida quando parte dos EUA para uma temporada na casa de família nas Furnas, S. Miguel; o telefilme da SIC acompanhava a perdição de um rapaz bom dum bairro de lata desde que a mãe o abandona e à irmã bebé até ao salto do moço para a morte.

O telefilme da RTP tinha incríveis defeitos (qualidade da cópia exibida; iluminação amadorística). A primeira cena açoriana, com a família dialogando à mesa, era demasiado extensa e com estética de telenovela, mas a realização e a montagem foram ganhando embalagem.

Surpreendeu o vincado conteúdo regionalista e o argumento comprometidamente moral e de filiação religiosa. A equipa de "A Viagem" não receou filmar uma história profundamente açoriana e católica. O rapaz reencontra-se na forte personalidade da avó conservadora, no diálogo com a Virgem Maria na igreja local e numa romaria por S. Miguel. O argumento não cai no facilitismo de fazer o jovem optar por ficar na ilha e prefere o bom senso de o devolver aos EUA com novo rumo na consciência.

O forte sotaque micaelense foi uma bênção para os ouvidos: não serviu para "regionalizar" a história, mas, ao contrário, ao radicá-la num mundo real, universalizou-a. Autores e actores têm o mérito de fazerem crível e aceitável uma história de fundo religioso totalmente estranha à ficção da TV portuguesa.

O telefilme da SIC passava-se nos antípodas; mas, se a história não explicitava qualquer ideia religiosa, o contexto era o mesmo: lá estavam as personagens do bairro da lata com bons princípios, lá estavam as raízes do Mal (não a pobreza, que é virtuosa, mas a quebra dos vínculos familiares pela mãe devido ao pecado da carne); lá estavam os meninos pobres a quem não dão oportunidade de serem bons (o "Black", pequeno delinquente, sonha ser polícia em Los Angeles).

O menino bom do bairro mau é levado a tratar da irmã sozinho, mas ao mesmo tempo cai na delinquência, até ser confrontado com um incêndio numa casa que estão assaltando - aí, o menino que ia ficando mau volta atrás, salva uma criança como a sua irmãzinha, resgata a alma; mas é encurralado por um polícia num alto dum prédio. Sem ver saída no prédio e na vida, entrega-se à mortal lei da gravidade. Este fim surpreendente (não é um "happy end") dá a consistência moral à história - e filia "Anjo Caído" no mesmo caldo de cultura ocidental e judaico-cristão do ano 2000, que, nas ilhas, originou "A Viagem".

CORRECÇÃO

Ao contrário do que escrevi na semana passada, não foi de Alcides Vieira mas sim de Manuel Fonseca que partiu a decisão de mudar o Jornal da Noite da SIC das 19h56 para as 20h00.