Eduardo Cintra Torres

Rangel da SIC para a RTP: Balanço e Perspectivas


Quando, no Verão de 2001, Emídio Rangel recorreu a plenários típicos do Verão Quente de 1975 para reforçar o seu poder interno, o seu destino na SIC ficou decidido. Francisco Balsemão não podia tolerar que a sua empresa de TV fosse "gerida" com processos que ele combatera como político e jornalista desde 1975. Balsemão podia aceitar o berbequim ou o ajuste de contas com o "Dantas" numa rua de Cascais, porque eram assuntos fora de portas. Mas os plenários dramáticos do género arrepiante "quem não está comigo está contra mim" ultrapassavam o que uma empresa cotada na bolsa pode aceitar. Era só uma questão de tempo - e Setembro era o momento certo. O falhanço de audiências da nova grelha de Rangel serviu razão plausível quando as negociações entre as partes estavam terminadas.

A nomeação de Rangel para director-geral da RTP representa o termo de um ciclo da história da SIC, mas só com algum optimismo se pode esperar que comece um novo ciclo na vida da RTP.

Comecemos pela SIC. Emídio Rangel fica ligado ao lançamento do primeiro canal privado em Portugal e ao seu enorme sucesso durante alguns anos. Em tempo de balanço, é justo sublinhar os aspectos positivos dos tempos de Rangel na direcção de programas e de informação da SIC:

- renovação da informação televisiva em temas, forma, resposta à actualidade.

- inovação da linguagem televisiva (discurso, cenário, montagem, imagem).

- renovação da programação de tipo popular.

- maior ligação às audiências.

- criação de novos tipos de programas.

- lançamento da produção contínua de telefilmes.

- lançamento de novos projectos, uns com mais sucesso (SIC Internacional, SIC Radical) do que outros (SIC Notícias-CNL, SIC Gold).

- manutenção de programas para a classe média/elites enquanto a concorrência o permitiu.

Estar numa empresa privada muito dinâmica e com um empresário muito próximo do jornalismo permitiu também que Rangel beneficiasse dum trabalho de equipa que englobou bastante de perto a direcção de "Marketing", com Hugo Correia Pires até 2001, e, na programação, Manuel Fonseca e António Borga, ambos com entendimento do que deve ser uma programação e atentos à resposta do público aos programas.

Todavia, a direcção de Rangel teve aspectos negativos:

- excessiva concentração de poderes e manutenção da teia de amizades acima da teia do profissionalismo.

- afrontamento da sociedade através do ecrã (Benfica, Cadeira do Poder, etc), prefigurando uma nova forma de abuso do poder social.

- grande (total?) desorientação quando a concorrência apertou em Setembro de 2000.

- introdução da contraprogramação como forma de "fazer" televisão, sobrepondo-a aos próprios programas.

- orientação política geral na informação/programação, que se traduziu numa estratégia de derrube do cavaquismo e de apoio ao guterrismo nos seus primeiros anos.

Esta última razão explica a sua nomeação para a Direcção-Geral da RTP. O primeiro-ministro e o PS (Guterres, Sócrates, Coelho) escolheram Rangel porque ele é próximo do PS. Os seus artigos no "Diário de Notícias" partiram quase sempre do ponto-de-vista de que o seu PS deveria mudar de política para continuar no poder.

As qualidades de trabalho e de combate de Rangel permitir-lhe-ão enfrentar resistências e levar para a frente programas mais originais e refinados tecnicamente, bem como dar o máximo para criar uma relação da programação com o "marketing", mas a sua passagem para a RTP dificilmente mudará a RTP. Para isso seria preciso um super-homem; o falhanço de Rangel na SIC no último ano seria suficiente para provar que ele o não é.

Mudar uma empresa é normal - quando se está numa empresa normal. Mas a RTP não é normal. Nem sequer é uma empresa. É um departamento do Estado mascarado de holdings e S.A. A RTP continua sob a alçada do governo, como a nomeação de Rangel o prova. Nada fará esquecer que Rangel é uma escolha de Guterres e Sócrates e não da administração da RTP. O administrador Rui Assis Ferreira teve a ombridade de sair por se opor.

Rangel enfrentará enormes resistências na RTP, que foram visíveis no próprio dia da conferência de imprensa em que repetiu as ideias sobre "serviço público" que já vinha preparando em entrevistas e artigos desde há três anos.

A RTP não é reformável. Em seis anos, o governo de Guterres piorou a situação do "serviço público" ao mesmo tempo que procurou manter o controle. Numa altura em que a informação voltava a libertar-se da tenebrosa tutela dos políticos, como já sucedera na complicada gestão de Joaquim Furtado e Joaquim Vieira, o governo arranjou maneira de afastar a direcção de informação que cometia a ousadia de não seguir a linha do PS. A saída de Rodrigues dos Santos e Judite de Sousa é o afastamento de uma equipa que não agradava a Guterres e Coelho.

Além disso, para alterar a RTP, Rangel teria que a aproximar de métodos de gestão de equipas de informação e de produção de programas do género dum canal privado. Isso não é possível. E haverá sempre o mesmo problema: a promessa do "entretenimento popular de qualidade", utopia que tem servido para enganar tolos durante seis anos, continuará uma promessa ou esbarrará em baixas audiências - pondo-se como sempre a questão do custo para a nação de uma TV do Estado que os privados poderão fazer.

Rangel procurará em primeiro lugar fazer uma TV mais atractiva para as classes médias, de forma a calar os jornalistas e as vozes mais críticas. Mexer na RTP2 é o caminho mais fácil e rápido. Mas fica o resto e não é pouco: os portugueses continuarão a ser espoliados dos seus impostos para alimentar o buraco negro duma "empresa" que deveria ser extinta e substituída por uma estrutura pequena, leve e competente.

Mesmo as qualidades de Rangel neste enorme desafio não serão suficientes para enfrentar uma situação interna gravíssima: a administração não tem sequer controle das contas, como João Carlos Silva reconheceu há cerca de dois meses em privado - mas que esconde de quem paga a RTP, os portugueses.

Receio que Rangel seja engolido pelo sistema antes de o conseguir mudar. Guerra Junqueiro disse da Universidade de Coimbra que ela só havia de iluminar quando fosse incendiada. Pois a RTP só nos dará uma boa programação quando for extinta.