Eduardo Cintra Torres

O Lugar do Televisor, Uma História com Classe


A posição da televisão/televisor no lar é uma questão complexa. O televisor é um objecto simbólico enquanto mobiliário do lar. Constitui uma escolha pelo "design", estilo, modelo, dimensão e outras características que à partida, segundo Pierre Bourdieu, já expressam alguma coisa acerca do gosto do proprietário.

Nos anos 80, alguns dos aldeãos mais remediados duma aldeia de pescadores de Sri Lanka visitados por uma estudiosa tinham televisores expostos na divisão principal das suas casas - apesar de não os poderem ligar por não haver electricidade na zona.

Mesmo escolhas menos radicais do que estas - as de nós todos, digamos - são marcadoras de classe que comunicam muita informação a toda a gente através da sua posição, ou da sua ausência, na casa. As diferenças de classe traduzem-se nas diferenças dos espaços e do lugar que as coisas ocupam nas casas.

Há casas de ricos, "nouveaux-arrivés" ou de segunda geração, em que a sala-de-estar não tem televisor; mas é uma sala de estar que não serve para estar. São lugares de uso quotidiano inútil. Ninguém se senta naqueles sofás tantas vezes desconfortáveis, de estilo; ninguém olha aquelas paisagens a óleo (têm de ser paisagens, D. Graça Viterbo, tem de ser paisagens!), com os seus pequenos candeeiros direccionados (devem ter um nome que desconheço); ninguém pisa aqueles arraiolos e persas. Estas salas-de-estar são um preço que os ricos pagam para poderem ser identificados como ricos por outros ricos.

Semelhante arquitectura de interiores obriga a criar nestas casas uma outra sala, uma salinha, que é a "salinha da televisão". Aí sim, estamos no verdadeiro lar. Há um sofá amplo, confortável, com um "throw" humilde desarranjado, para impedir as nódoas ou para se passar as mãos quando se come à vontade em frente do televisor. Esta salinha é o centro destas casas de ricos, centro dissimulado, e por isso deslocado do centro geométrico, se assim me posso exprimir. O televisor ali está, também ele meio escondido numa estante com uma dúzia ou uma grosa de livros que transmitem pelas lombadas mais calor ao lugar (o poder do livro!), mas principalmente com as cassetes de bonecos animados dos miúdos.

Há outros ricos com uma relação mais simples com a televisão. O televisor está onde está porque é para ver. O marcador de classe é neste caso, muitas vezes, o "design". Um televisor Bang & Olufsen ou um topo de gama da Sony torna-se uma obrigação social e não um imperativo técnico.

Os pobres ou remediados são mais directos na colocação do televisor na sala-de-estar. Não dissimulam o papel da televisão na vida. O televisor ocupa um lugar central, correspondente da lareira, do altar dos deuses do lar. Tudo converge para o televisor, santuário onde se celebra o culto. A televisão, como os filhos, é a alegria do lar. Os pobres sabem que a televisão generalista é deles: por isso não escondem o melhor que a vida tem, o televisor da televisão.

A "sala comum" dos pobres ou a "salinha da televisão" dos ricos são uma e a a mesma coisa: o "videocéu", compartimento da casa onde se encontra o principal televisor, espaço que reúne androceu e gineceu, como o lar "símbolo da vida em comum, da casa, da união do homem e da mulher".

Devido à relação difícil que certa classe média mantém com o fenómeno televisivo, ou por displicência, por snobeira, por sentimento de culpa ou por real desinteresse, há famílias que mantêm o televisor em lugar menos destacado. Ou há quem o tenha no chão, como se esse desdém diminuísse o peso físico e virtual do fenómeno. Há quem o ponha num canto, descentrando-o dos principais lugares sentados.

Há ainda quem compre ou mande fazer um móvel com uma tampa atrás da qual o televisor se esconde. O televisor é assim comparado ao vaso de Pandora, que conteria todo o Mal ou - noutra versão do mito - todo o Bem que a sua proprietária teria deixado escapar. Como se assim fosse possível esconder, espartilhar todo o Mal (ou todo o Bem) que se guarda na caixa.

Hoje, as tampas de certas estantes escondem televisores, mas não o apagam de dentro do lar. Ele está lá. Por trás da tampa. Da tampa enorme que, não sendo de um bar (tampa que esconderia então outro Bem e outro Mal), só pode ser do televisor. Quando há visitas e a tampa se fecha, toda a gente sabe que "ele" está ali.