Eduardo
Cintra Torres
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O Televisor Desligado |
Há quem diga que "a melhor televisão é uma televisão desligada". Como quem diz: está-se melhor com o ecrã negro e silencioso, dedicando o tempo a outras actividades. O que falta dizer é que o televisor desligado continua lá. Está presente. Antes de ter conteúdo, o televisor é contentor. É uma caixa. Um móvel. Um ecrã, um olho de vidro, presente nas nossas casas. Se um televisor ligado tem uma presença enorme - de luz, de movimento, de cor, de sons -, a presença física do aparelho faz-se sentir com ele ainda apagado. O televisor, contentor e conteúdo, transformou-se no próprio lar. O lar da família era o "deus da lareira, objecto de culto em casa" dos romanos. "O páter-famílias oferecia-lhe sacrifícios em datas importantes do mês e em circunstâncias solenes." Não é assim hoje com a televisão? Para os antigos, os lares também exerciam a sua protecção fora de casa. E, na verdade, se durante o Verão centenas de milhares de televisores são desligados por longas semanas havendo menos gente a ver televisão e a passar mais tempo no exterior, há também muitos televisores que viajam nas malas dos carros ou que se alumiam nas casas de férias ou nos quartos de hotéis ou nos parques de campismo. O novo lar, ou a lareira electrónica, acompanha as pessoas e as famílias. As pessoas olham para ele como para as brasas em chamas numa noite de frio e vento. A mitologia apresenta o lar ou a lareira como "símbolo da vida em comum, da casa, da união do homem e da mulher, da conjunção do fogo e do seu receptáculo". "Enquanto centro solar que aproxima os seres, pelo seu calor e pela sua luz - que é também o lugar onde se cozinha a comida - é o centro de vida, de vida dada, conservada e propagada." "O lar foi também sempre honrado em todas as sociedades; tornou-se um santuário, sobre o qual se pede a protecção de Deus, onde se celebra o seu culto e onde são conservadas estatuetas e imagens sagradas." A televisão e o seu corpo físico, o televisor, são hoje tudo isso - incluindo na devoção que se lhes dedica e na adoração das estrelas e dos "conhecidos". O televisor é, dos electrodomésticos de consumo, o único que coincide com a vida doméstica. Todas as tentativas de fundir o aparelho com aparelhagens sonoras e com o PC e de o tornar quase sempre transportável ou falharam ou são residuais: "O 'habitat' da TV parece ser necessariamente o espaço doméstico", escreve Peppino Ortoleva. Já não existem móveis como eu ainda conheci em casa do meu avô paterno por volta de 1960: o televisor fazia parte de um conjunto com telefonia e gira-discos, tudo encastrado num móvel comprido, de origem, com um formato que não era nem de cómoda nem de aparador. Mas podia pôr-se objectos por cima, como numa cómoda. A televisão ainda não sabia que lugar ocuparia no lar. Estava disfarçada. E, realmente, pouco se notava quando a portinha estava fechada. A televisão é demasiado poderosa para suportar submissões a outros aparelhos, por isso este modelo desapareceu. Com o televisor preso a outras coisas, as famílias tinham dificuldade em escolher onde pôr o seu novo lar. Hoje, o televisor é um dos aparelhos presentes em mais casas portuguesas, como sucede em toda a Europa, onde só o frigorífico e o telefone conseguem também atingir cerca de 90 por cento dos lares. Em Portugal, segundo um estudo do INE terminado em 2000, são 96,6 por cento as famílias que têm um ou mais televisores em casa. A sua presença no lar cresce ao ponto de as famílias com um único televisor serem hoje uma minoria: 38,4 por cento. Há mais famílias com dois televisores (40,4 por cento) e com três ou mais televisores (21,2 por cento). O lugar físico do televisor é muitas vezes de onde irradia a ordem espacial. É a partir dele que se organiza a sala de estar, o lugar da lareira. A televisão também está nas cozinhas, lugar de comunhão familiar para muita gente (ou para entreter empregados). O televisor "principal" ou da cozinha fica em lugar de destaque, para que todos a possam usufruir em igualdade de circunstâncias. A entrada da televisão nos quartos de dormir significa não tanto afluência mas que a família está em mutação permanente. Poderá permanecer unida, mas a posição do páter-famílias já não tem a mesma autoridade de outros tempos (quer dizer, de há poucas décadas). Significa maior independência, mais liberdade de todos os membros da família. Para permanecer unida, a família tem de viver sob o mesmo tecto com vários lares, com vários televisores: 70,3 por cento das famílias portuguesas vêem TV na sala e 32,1 por cento na cozinha; 8,7 por cento dos quartos dos filhos são outro local de visão, bem como o "quarto principal" da família, que serve 23,1 por cento das famílias. Ninguém escapa à televisão nem à presença física do televisor. A sua ecologia começa antes de o olho de vidro se iluminar. Desligado, ele é como uma pálpebra cerrada: pode levantar-se a qualquer instante. Tem, ainda assim, um poder enorme. No filme "Poltergeist", realizado por Tobe Hooper em 1982 (com Steven Spielberg como co-autor e co-produtor), uma menina é sugada, pelos espíritos de mortos zangados, através do televisor. A menina via muita televisão. De tanto a olhar, na sua inocência, abriu a caixa de Pandora. Enquanto o televisor estivesse em casa, os espíritos estavam lá também, mesmo com o aparelho desligado. A televisão, ao ser instrumentalizada pelo Mal, desorganizou a vida daquela família. E que carga de trabalhos têm a família, cientistas e uma bruxa boa para trazer a menina de volta ao mundo real! No fim, só o amor da mãe - o garante máximo da unidade familiar nesta mitologia afinal antiga - consegue arrancá-la ao mundo virtual em que se encontrava (dos espíritos?, ou da televisão que ela tanto consumia?). Na última cena do filme, a família de novo reunida, sem casa - destruída pelos espíritos zangados - fica a dormir num motel à beira da estrada. No quarto, há um televisor. Está desligado. Mas está lá. Tem uma presença. Só há uma maneira de escapar à eventualidade de novo ataque do Mal. É o que faz o páter-famílias: abre a porta do quarto e empurra o carrinho com o televisor para fora do quarto. "Happy end". Este texto tem seguimento na próxima segunda-feira com o artigo "O lugar do televisor, uma história com classe". |