Eduardo Cintra Torres

Ficheiros e Erros Clínicos


A evolução dos noticiários de TV no último ano tem criado perplexidades no meio jornalístico e entre os leitores de jornais. Uma das principais alterações deve-se principalmente à TVI e é de tal forma poderosa que tem arrastado atrás de si os noticiários da SIC e da RTP em maior ou menor grau.

Trata-se das notícias de "pessoas do povo". Duas reportagens do Jornal Nacional ilustram esta nova temática informativa.

Uma delas (26.07), dava conta do caso do Sérgio Daniel, criança de dois anos da Póvoa de Varzim, que ficou cego e paralisado por lesões cerebrais devido ao que se prefigura ser um caso de clamoroso erro de diagnóstico e de displicência médica (E da arrogância médica de tantos conhecida: "Quem é quem sabe? Quem é o médico aqui?", dizia uma médica à mãe do Sérgio. "Sou eu ou é a senhora?"). Quando chegou ao Hospital de S.António, no Porto, salvaram-lhe a vida mas foi tarde para evitar a deficiência definitiva.

Um director clínico deste hospital não hesitou em afirmar, contra os colegas da Póvoa, que é "uma história triste e angustiante porque evitável"; "a palavra negligência não é assim tão forte como isso."

Os pais - ele na construção civil, ela costureira - não têm posses para avançar com um processo contra os presumíveis autores de negligência criminosa. A TVI ouviu-os. O pai: "Nós, se levamos isto a tribunal..." A voz da mãe, surgindo por detrás da câmara, interrompeu-o: "...quem ganha é sempre 'eles', não é?" Ao que o pai continuou: "... não temos posses. É muito difícil." E de novo a voz da mãe: "Neste caso acho que ninguém se vai responsabilizar, não é?"

O terrível corporativismo da mediocridade médica decerto tantas vezes criminosa que grassa nos nossos hospitais e por todo o sistema nacional de saúde vive sem ameaça à sua impunidade porque os pobres não têm posses para lhe fazer frente. No fim, quem ganha é sempre esse tenebroso "eles" nomeado pela mãe do Sérgio Daniel.

A situação só muda quando os pobres recorrem à sua melhor e quase única arma eficaz: a televisão. Através dos casos particulares que a retórica textual e visual transforma em casos de todos, a televisão dá voz aos pobres, dá-lhes "posses": a informação.

Este tipo de notícias, que enjoa certos espíritos superiores, é de grande utilidade para os despossuídos porque lhes fornece a arma da informação, prevenindo-os ou permitindo-lhes obrigar os poderosos (incluindo o Estado que paga à médica da Póvoa) a tomar medidas e a condenar eventuais crimes.

O uso que os despossuídos fazem destas notícias de TV justifica plenamente o seu tipo de informação. O estudo de 1996 sobre a literacia em Portugal inclui uma monografia de duas freguesias do centro histórico de Lisboa, com visitas aos seus Centros Sociais para idosos.

Vale a pena conhecer estes velhotes iletrados ou analfabetos: "a tendência aponta no sentido de estarem progressivamente mais consciencializados sobre as possibilidades de exercerem os seus direitos, sobretudo devido ao papel central da TV enquanto fonte de informação".

Disse uma advogada que os aconselha no local: "A mediatização deste tipo de problemas jurídicos foi como que uma alavanca para provocar e alertar as pessoas para a resolução dos seus problemas. É uma consciência de direito que apareceu no enquadramento do seu quotidiano. Discutem em conversa uns com os outros, ficam angustiados, e querem logo esclarecer-se, tirar todas as dúvidas. Nisto são muito expeditos. Aparecem muito aqui e batem o pé pelos seus direitos".

Há, portanto, uma utilidade social nas notícias que revelam escândalos como o que destruiu as vidas do Sérgio Daniel e dos seus pais para sempre. É irrelevante se estas notícias são mais "narrativizadas" do que as de temas "importantes" como a política nacional ou internacional: a diferença técnica, neste aspecto, pode ser mínima, pois todas as notícias - mesmo todas - são narrativas, mesmo as deste jornal que o leitor tem na mão. Se não fossem narrativas não seriam notícias.

O caso do Sérgio Daniel é o lado negro dos Ficheiros Clínicos que Cláudia Borges apresentou na SIC (em repetição na SIC Notícias). Estas reportagens centravam-se no lado positivo da medicina: o que a cirurgia pode fazer. Recordo o caso da senhora com incontinência cuja vida era um martírio numa aldeia do centro do país. Uma pequena cirurgia devolveu-lhe a liberdade e o bem-estar. No final da reportagem, fomos com ela de viagem de camioneta (antes não o poderia fazer).

Estes casos positivos eram também narrativas mas, por não ofenderem critérios de gosto, ninguém levantou a questão de serem "estórias pessoais".

Tratou-se, nesse caso, de reportagens com divulgação científica em simultâneo com o "interesse humano". Quem decide é quem vê: interessa-me mais o que a medicina vai permitindo fazer ou a estória de "interesse humano" da senhora operada (lado que esteve sempre nos Ficheiros Clínicos)?

Diferente era a outra reportagem da TVI que escolhi para reflectir. Tratava de um trabalhador em Alijó, Trás-os-Montes, que, por acidente, não podia trabalhar. Vivia, por isso, em grandes dificuldades com a mulher e quatro filhos, numa casa paupérrima. A reportagem foi ver e nada mais trouxe do que a miséria e o habitual "eu só queria uma casinha" chorado para as câmaras. Digo câmaras, no plural, porque o "eu só queria uma casinha" é destinado à câmara de filmar e à câmara municipal, que, no caso, para se limpar, disse que já estava estudando o caso.

Esta reportagem não podia funcionar como sinédoque exprimindo o todo pela parte. Ali não houve nada mais que o caso particular. Não foi generalizável. Houve publicidade, não notícia. Teria mais sentido esse tipo de itens publicitários em programas de solidariedade.

Estes erros jornalísticos são, todavia, um preço a pagar em troca de reportagens de importantíssimo alcance como a estória do Sérgio Daniel. O director do Hospital Maria Pia da Póvoa de Varzim, onde a criança foi "vista" há um ano, falou atrapalhadamente do assunto, defendendo-se com o desconhecimento e inexistência de queixa. Mas afirmou que "vai apurar responsabilidades" (porque a queixa, existindo na TV, existe de facto!). Nesse momento, a fechar a reportagem, ouviu-se, por trás da câmara, a voz do jornalista: "Voltaremos cá."