Eduardo Cintra Torres

"Welcome To America" (Bis)!


Tinha que acontecer: o Jerry Springer Show haveria de cá chegar. A SIC pô-lo no horário tardio, embora em certas noites não tão tardio quanto isso. Acrescentou-lhe uma alocução prévia de Carlos Cruz, à antiga, que serve apenas para "nacionalizar" o produto. Não está mal, mas não era preciso: num mundo televisivo globalizado e liberalizado, os espectadores já esperam tudo da sua televisão nacional, quanto mais da TV americana.

É bem possível que muitos espectadores vejam o programa como um "reality show", como uma ficção de situações verdadeiras. E fazem muito bem. Eu acho mais graça ao Jerry Springer Show, com a sua procissão de misérias humanas, do que a séries como a Ally McBeal.

E, assim, num Verão frio em que os nossos operadores de TV repetem programas dia sim, dia sim, em que até repetem notícias intermináveis da noite anterior, como faz o Jornal Nacional da TVI, o Olho Vivo segue tão magnífico exemplo e retoma hoje o texto sobre o Jerry Springer Show aqui publicado há três anos, quando apenas era possível vê-lo em canais estrangeiros. (PÚBLICO, 23/08/98).

No palco, a mulher diz que é um homem e tem que dizer ali a verdade ao apaixonado por ela/ele, que está nos bastidores, a alguns metros de distância, mas não sabe o que acabámos de ouvir. Chamado ao palco, o homem ajoelha-se com flores e anel de noivado perante o transexual. Ela/ele impede-o de levar até ao fim a patética declaração e fá-lo sentar. E então, perante o mundo inteiro, diz-lhe o que já lhe devia ter dito no recato dum qualquer lugar sem câmaras. O homem fica boquiaberto; afasta a cadeira; levanta-se em fúria e, como um homem não bate num transexual (?), arranca-lhe o cabelo postiço. Surgem guarda-costas e afastam-nos. O homem deixa-se cair na cadeira e diz desconsolado: "Welcome to America!"

Welcome to Jerry Springer Show, o polémico programa de TV. Ao palco sobem homens mantendo ligações simultâneas com várias mulheres, outros que não "deslargam" depois de terminada a relação, mulheres que traem para se juntar a homens com o triplo da idade. E muito mais. Por exemplo, um ex-polícia que se acorrenta e ajoelha perante uma dom(in)adora profissional (a "dominatrix", que lhe ensina uma atitude de vida contrária à dele) para afinal saber ali em directo que ela é um homem. Ou casos de homens que têm relações com transexuais julgando que são mulheres, casos de mulheres que mantém relações com lésbicas armadas de dildos, isto é, "próteses" genitais, julgando que são homens, acontecendo uma das lésbicas abrir a braguilha das calças do fato assertoado para mostrar a coisa, "live on TV". Ou o homem que anuncia o divórcio à mulher, "actriz" porno espalhando sobre os parceiros o leite de amamentar o próprio filho. Ou o jovem que dormia com a melhor amiga da mulher para descobrir que ela também (mas esta dizia que enganar com uma relação lésbica não é enganar, pois não podem nascer bebés).

O caso mais virado do avesso de todos foi o da lésbica que mantinha uma relação lésbica para descobrir que estava grávida de cinco meses, porque a sua "lésbica" era um transexual que, aparentemente, se enganou e manteve com ela pelo menos uma relação sexual "normal". Partiram da perversão total para chegar a Adão e Eva.

Os casos desenrolam-se sem a candura doutros "talk-shows". Aquilo é gente baixa que diz cinco palavrões em cada quatro palavras, dá chapadas e puxa os cabelos. Convenientemente, os gorilas do programa chegam sempre ao palco depois das primeiras chapadas. As conversas seguem com os "entrevistados" de olhos negros.

Na assistência, Springer lança perguntas ou proporciona aos espectadores que interroguem ou mandem bocas aos "freaks" no palco. A assistência ri-se à gargalhada o tempo todo. Jerry ri-se. E, na verdade, aquilo dá uma enorme vontade de rir. O programa, com os seus casos monstruosos, anormais, estranhos ou simplesmente estúpidos, é muito divertido. É como se fosse um Perdoa-me ao contrário: em vez de serem todos tão queridos e tão bonzinhos, são "monstros" do mundo real a quem é dada uma oportunidade para os seus 15 minutos de celebridade e porrada.

Springer termina com intervenções de bom senso, desarmantes naquele meio e que, assim, tornam o programa num produto "mainstream" de TV visto por milhões e que os pais vêem com os filhos adolescentes. Numa sessão em que as obscenidades e a tareia passaram as marcas habituais, Springer disse que o seu programa é com "real people" e que outros "talk-shows" são fingidos, preparados, com diálogos escritos por "profissionais", são "shows" "higienizados". É certo que os seus próprios convidados fazem naquele palco a encenação dum momento que não quiseram ter na vida "lá fora", mas digam-me que Springer não tem razão.

Enfim, "welcome to America". No mesmo programa em que se revelam todas estas coisas, os palavrões são tapados com um "piiiip" (ou, em Portugal, substituídos por um silêncio) e o pénis de plástico da transexual é escondido com um efeito digitalizado. A América da loucura normal é a mesma América do puritanismo anormal.

Antes da era dos "media", conhecer as realidades estranhas e monstruosas fazia parte da vida e era igualmente associado ao entretenimento. Vejam-se os contos populares ou o Antigo Testamento, onde ao entretenimento das monstruosidades se associa a lição moral. E o circo? Tinha mulheres barbadas, anões, gigantes, hermafroditas, mulheres-Hércules, o homem-elefante e outras deformações. A gente pagava para ver. O circo é quase todo ele o espectáculo da diferença que passa pela nossa aldeia uma vez por outra, alterando o quotidiano apenas para o confirmar.

Até o público se cansar de ver o circo tantas vezes, o "show" de Springer vai mostrando às "pessoas normais" pedaços do mundo exterior que as ensinam a descobrir o seu lugar nesse mesmo mundo, tal como o conto popular ou a lição de moral do Antigo Testamento. É a atracção de ver o abismo, que parece que todos temos, sem nele cair. Neste caso, o abismo é divertido de ver.