Eduardo Cintra Torres

Vinhetas Estivais


Personagens queirosianos

Eça de Queirós merecia melhores queirosianos. O trabalho de um ano do PÚBLICO teve balanço no dia final do centenário da morte de Eça (16/08): deixou patente a pequenez do nosso mundo académico e de estudiosos. Ficámos a saber das capelinhas e de como se não falam uns com os outros.

O nosso pequeno mundo queirosiano é, ele mesmo, personagem das pequenezes lisboeta e lusitana arrasadas por Eça.

Temos ilustres estudiosos fingindo que não leram a única biografia de Eça de Queirós que saiu no ano do centenário e, afinal, a única escrita desde há muito. O silêncio sobre o trabalho de Maria Filomena Mónica é um silêncio de vergonha.

E temos ilustres queirosianos que "não viram" a adaptação de O Conde de Abranhos produzida pela RTP e única obra de ficção de Eça transformada em audiovisual desde há muito. O silêncio é, neste caso, a incapacidade "blasé" de aceitar a transfiguração de Eça no audiovisual.

Os nossos queirosianos "não leram" Mónica e "não viram" O Conde de Abranhos na RTP1. Que bons que eles são! Que cultos! Que superiores! Não querem comentar, criticar, analisar dois dos mais importantes documentos que se fizeram no ano do centenário.

A biografia ocupou a autora durante anos; a série da RTP representou esforço importante duma estação de TV que está nas lonas. Ambos são, à sua maneira e nos respectivos meios, trabalhos importantes e de grande impacte público. Independentemente dos seus méritos ou defeitos, era obrigação moral, profissional e social dos queirosianos pronunciarem-se sobre eles. Não o fizeram.

A RTP calada

A RTP falhou o directo da prova e da medalha de Carlos Calado nos Mundiais de Atletismo de Edmonton (PÚBLICO, 13/08). Eu acompanhei a profissionalíssima prestação do atleta português pelo Eurosport. Quando Calado recebeu a medalha, mudei para a RTP1 e só vi publicidade. Zapei. O serviço público foi-me prestado pelo Eurosport.

Há duas regras de ouro na TV comercial (e a RTP, tendo publicidade, é por natureza uma estação comercial): a primeira é que a publicidade é tão importante como os programas; a segunda diz que em caso de evento em directo a publicidade se pode tornar um estorvo e deve ser varrida da emissão o tempo que for preciso. Era o caso.

Sábado à noite. Os responsáveis não estão! Quem está de serviço não tem poderes para alterar a programação. Diálogo na terça-feira seguinte, ao fim da manhã:

- Então não percebeu que o Calado ia ganhar a medalha?

- Ó chefe, a medalha não estava no alinhamento da emissão que o chefe cá deixou...

- E não podia ter mudado a emissão e punha o Calado no ar?

- Ó chefe eu cá não sei de nada... O chefe não estava cá...

- Então e não podia ligar pró meu telemóvel?!

- Ó chefe, o chefe não deixou nenhuma ordem de serviço assinada... Isto pelo telemóvel é muito giro, mas, ó chefe, "eles" estão a despedir pessoal e isto sem papel assinado quem se tramava era eu...

Grande azar

Depois do luxo "kitsch" da Roda dos Milhões na SIC, onde os números da lotaria se cantavam por entre um "son et lumière" digno de Las-Vegas-Sobre-o-Tejo, a Santa Casa da Misericórdia (mais santa a dar prémios do que misericordiosa com os telespectadores) regressou a penates para a RTP, onde o esforçado Pedro Ribeiro tenta animar um programa que, sendo de Sorte Grande para quem ganha a taluda, é de grande azar para quem o vê. Reconheço sem problemas: Sorte Grande é um programa do século XX. Mas nós, hélàs!, já estamos no século XXI.

Parceria

Desde a Parceria A.M. Pereira que eu não ouvia falar tanto em parcerias como agora. Nas capas dos seus livros, eu gostava tanto de ler o nome do Camilo como o nome da Parceria. A RTP também se meteu em parcerias modernas. Fez uma parceria com a ParaRede para um portal na Internet. Pois nem portal nem portão. A parceria acabou (PÚBLICO, 13/08).

Que o projecto não fosse para a frente nem é de estranhar. As empresas mudam de prioridades e estratégias ou enganam-se nos casamentos; além disso, a Internet revelou-se um sorvedouro de recursos em muitos projectos: é uma aflição ver as empresas meterem dinheiro pelos cabos das empresas de telecomunicação adentro - pelos "cabos de esgoto" abaixo! As empresas dirigidas por Francisco Balsemão perderam dois milhões de contos nesta coisa dos portões digitais, ou portais digitões. Com dois milhões, que magníficos programas de televisão se faziam...

O que aborrece no caso da parceria da RTP é que "os presidentes" da empresa, João Carlos Silva, como veio da política, ao invés de calar e fazer, tomou o caminho habitual dos políticos: falou e não fez. Em Abril do ano passado era uma beleza, o amanhã do portão digital cantava para todos os portugueses, seria um "grande centro de informação, divertimento e negócios"! Agora, o "grande centro" portal é um sítio na Net! Nada de mais: todo o Portugal é um sítio. Acabou a parceria. Felizmente que a Parceria A.M. Pereira parece que ressuscita. Prefiro essa. E Camilo. Mas prefiro Eça.

Novo formato

Que pena!, já ambos são pó e vivem apenas nas frágeis folhas de pasta de papel! Mas fica a certeza reconfortante de que nem Eça nem Camilo deixariam escapar este imbróglio concreto e nunca antes imaginado...

Começa com dinheiros prévios de Manuel para Bárbara e ódios maquilhados de António contra Manuel e vingança de Manuel contra Catarina que é mulher de António depois de ter trabalhado com Manuel que trabalhava sob as ordens de António...

Que grande estória de amores, ódios e vinganças! E que palcos para cenas de palco! Se lhes juntarmos o coração com pelos do chefe Jorge Hádem Iago, se juntarmos William, de Mr. Bean irmão gémeo (que estórias de ganância!, que lágrimas de olhos d'água em tudo isto!), se juntarmos o pós-modernismo do casamento-que-não-foi e das "bodas de facto" que se instituíram como facto social durkheimiano, se juntarmos o crime das fotos roubadas ao "Expresso" (crime mais grave que o da Ria Formosa!) e se juntarmos ainda as fugas de meio relatório para a "Focus" e da outra metade para o "Diário de Notícias", teremos matéria para um romance digno das nossas novas glórias literárias, uma Margarida Rebelo Pinto ou um João de Deus Pinheiro! E como lhes convém: não é preciso inventar nada!

E porque não uma novela? Ou uma telenovela? Ou uma farsa? Ou uma comédia? Ou uma tragicomédia? Ou um telefilme? Ou um novo "formato" televisivo? A televisão reinventa-se todos os dias, não é diferente da política, dos negócios e dos sentimentos.