Eduardo Cintra Torres

Popular de Qualidade


Ninguém deixou de recordar que a MTV começou há 20 anos com o teledisco do tema "Video killed the radio star". Havia nos fundadores do canal a autoconsciência de que faziam história, o que às vezes é irritante porque a história tem mais graça quando é feita inconscientemente. Mas, enfim. A MTV é um êxito mundial e exemplifica a globalização: está em todos os continentes, mas teve de se adaptar um bocadinho - "glocalizar" - às culturas locais.

Esta localização da globalização poderia servir de esperança aos militantes anti de que a globalização se assemelha à romanização: os romanos que nos invadam com as suas novidades, mas que se adaptem às coisas cá da terrinha. Suponho que os lusitanos preferiram as delícias de Conímbriga aos pedregulhos dos montes Hermínios.

A MTV motivou alteração estética da linguagem televisiva. De facto, o idioma do videoclip extravasou não só para outros géneros televisivos como também para o cinema.

Faltou dizer o que a MTV trouxe de negativo: o fim da música pop como criação pura, quer dizer, independente de outras considerações e outras formas de expressão. "Video killed the radio star" não queria só dizer que a TV destronava a rádio. Também queria dizer isto: "Video killed pop music"; a imagem matou a música popular.

Enquanto na ópera o espectáculo visual realçou e estimulou a qualidade da música e criou um género novo imortal, na televisão o videoclip fez descurar e levou à substituição da música pela imagem como valor primeiro do produto a vender.

Suponho que não é por já trazer na cabeça o peso de cabelos brancos que acho a música pop de hoje inferior à que se fazia antes da MTV, fosse há 20 anos, há 40, 60 ou 80.

A MTV tem boas audiências em todo o mundo e é um bom negócio; ainda bem para o seu global proprietário e para as suas audiências locais. Mas... são audiências de quê? De imagens, quase todas de insuportável vulgaridade? De "música popular de qualidade" é que não deve ser.

"Música popular de qualidade" é o tema do programa Jazz a Preto e Branco (RTP2, sextas-feiras), criado e apresentado por José Duarte. Com ele, a RTP parece alterar parcialmente o seu deplorável desinteresse pelo jazz. Não é que o jazz deva merecer mais atenção do que outras formas musicais "populares de qualidade" (e daí talvez mereça); mas porque o jazz, ao contrário da música da MTV, tem uma vibração ao vivo insubstituível e que casa muitíssimo bem com a TV.

Mais: sem a televisão perdem-se documentos extraordinários desta forma musical. A TV é o meio de comunicação do "directo" e o jazz é o meio de comunicação da improvisação, isto é, da "música em directo" - jazz e televisão ligam-se entre si como pão e manteiga. Nos concertos a visão complementa realmente a música.

A RTP mantém por explorar o seu interessante acervo de jazz ao vivo. Se há programas que vale a pena repetir são os concertos de jazz que a RTP gravou. Mas o pior é que a RTP abandonou por completo a gravação de novos concertos. Não há bago.

De uma pobreza franciscana nos meios e nos grupos que consegue gravar, Jazz a Preto e Branco é um luxo numa casa que há tanto despreza o jazz. Além da "performance" - demasiado improvisada - de José Duarte, apresenta actuações ao vivo, em estúdio simples de luz nocturna, de grupos portugueses e estrangeiros, alguns bastantes fracos. Motivo da fraca selecção? Não há bago.

A RTP tem que gastar os poucos euros que sobram dos juros bancários e da burocracia, não em jazz, mas naquilo a que também o novo ministro da casa, Augusto Santos Silva, chama "programação popular de qualidade" (e é mais um que não a define), como o vómico Sábado à Noite, de João Baião, ou o inane Estação da Minha da Vida, de José Nuno Martins.

E a propósito de "programas populares de qualidade": Herman José sentiu saudade de Serafim Saudade, como muitos dos seus fiéis espectadores, antigos ou recentes. O programa especial "Serafim Saudade: o Regresso" (SIC), que ele escreveu, realizou, compôs e interpretou, representa o empenho do humorista em manter viva a linha de criatividade em que nasceu para a TV.

O programa era, porém, mais do que um sketch ou um conjunto de sketches, técnica de escrita e de TV que Herman domina há décadas. O regresso do Serafim deu quase um telefilme. Herman escreveu uma história com princípio, meio e fim (uma proeza na nossa dramaturgia televisiva), criou personagens, manteve o ritmo, teve alguma graça, trouxe, até, alguma surpresa na concepção estética na encenação de fadunchos do Serafim na sua barraca pobremente mobilada, onde surgem do nada os guitarristas que o acompanham, e na encenação de canções no quarto de hospital da sua "Vanette Gonçalves Pereira", encenação bem inspirada nos espectáculos e filmes musicais americanos.

O Serafim já nem consegue barrar a sua pobre fatia de pão e lamenta que as suas mãos sejam agora apenas "apêndices meus": "Pobres mãos velhas encardidas/Pele seca, unhas por limpar/São agora dois pobres matacões/Que nem chegam para me pôr a mijar."

Herman José está à vontade neste humor brejeiro e engraçado que o liga à terra, quer dizer, aos assuntos nossos, das nossas ruas e pessoas. O argumento lidava bem com as situações da indústria discográfica pimba, das estrelas cadentes do audiovisual, dos hospitais (o médico anuncia que "vai lanchar" depois de dizer à moribunda para se apressar a morrer, que "eu preciso tanto desta cama").

A equipa de que Herman José se rodeia é a mais talentosa que se encontra na TV portuguesa quando se trata de humor popular. À parte o patético Cândido Mota e o abrasivo Joaquim Monchique, estiveram bem o próprio Herman José, Lídia Franco, Maria Vieira, Rui Mendes e ainda o par Ana Bola-Rita Blanco, que criou duas ou três cenas em franco-português com empatia mútua e muita chispa.