Eduardo Cintra Torres

Aprender com a Banalidade


A ideia de que não se aprende nada com a TV faz parte dos lugares-comuns sobre o meio. A TV seria um fluxo ininterrupto de conversa de chacha, anestesiante e alienante de espíritos e ideias; com a TV a falar os amanhãs que cantam ficariam para de tarde.

Este lugar-comum resulta da mais importante e também mais desprezada característica da TV: ela é um meio de comunicação oral e visual e organiza-se pela oralidade; a cultura oral é completamente diferente da cultura escrita. Não deve, por isso, ser analisada com as mesmas ferramentas com que se analisa a imprensa escrita ou a literatura.

A análise da conversa na TV, mãe de toda a chacha, passa por afastar este lugar-comum. «A conversa é o melhor da vida», escreveu o ensaísta americano Ralph Waldo Emerson; há que respeitá-la.

É certo que quando se fala se fala sempre demais; também na TV. Um conhecido da actriz Tallulah Bankhead disse uma vez: «Acabo de passar uma hora a falar alguns minutos com a Tallulah.» As palavras proferidas são sempre mais do que as necessárias para exprimir o mesmo pensamento por escrito. Mas isso não tem importância; a conversa também tem segredos.

A conversa televisiva começa por dar-nos as palavras e toda a informação nelas contida. As palavras são já, elas mesmas, um modo de acção, são acções. Ao falar, uma pessoa está a agir - coisa que não sucede com um texto escrito, pois, embora resultando de uma acção, não é uma acção.

Tudo o que é dito pode ter interesse. As banalidades são uma escola de conhecimento - e até de inspiração artística. «Nunca me cansarei de reconhecer, nem de repetir, que tudo é banal e que só o banal interessa», escrevia Irene Lisboa em 1956. «Paradoxo? Confusão, evasão do espírito? Tudo é banal... Que há fora do banal?...» «Como a banalidade interessa!», repetia. Ver banalidades televisivas pode ser interessante.

A conversa distingue-se da entrevista pela pergunta. É esta que cria o género entrevista. No género televisivo da conversa, a pergunta tem de ser feita de forma especial para a distinguir da entrevista, isto é, do interrogatório, porque «interrogar não é o modo de conversação entre cavalheiros», dizia Samuel Johnson em 1791.

Alguns entrevistadores utilizam a pergunta escondida e o «jogo de círculos» para simular conversa, iludindo o carácter primordial de interrogatório da entrevista. Foi o que fez com categoria Ana Sousa Dias em Por Outro Lado, RTP2, que terminou com chave de ouro entrevistando Júlio Pomar. É o que faz o entrevistador-conversador Larry King no CNN e é essa a tendência geral dos talk-shows, que acentuam o lado conversacional da presença dos convidados. Os jornalistas televisivos fazem geralmente o contrário: distanciam-se do convidado reforçando o lado interrogante (com perguntas sucessivas, repetidas, interrupções, referindo que é esse o seu papel, etc).

Esta diferença entre conversa e entrevista está na base do afastamento da TV em geral do género nobre da entrevista e da multiplicação dos "talk-shows" conversantes: enquanto a entrevista é um momento de tensão/conflito/confronto, a conversa de "talk-show" é um momento de distensão/tréguas/encontro, mais próximo do quotidiano e mais agradável. Alguns jornalistas televisivos têm recorrido a um tipo de entrevista numa terceira via: interrogatório mas com distensão; foi o caso de Maria João Avillez (SIC Notícias). Já Bárbara Guimarães (Terceiro Elemento, SIC Notícias) tenta, mas sem êxito.

Este fenómeno é geral e tem vindo a acentuar-se no tempo. A conversa substitui o interrogatório e o conflito verbal à medida que a sociedade fala mais. O parlamento resulta mal na TV por ser um lugar de confronto de ideias e posições contrárias; esse lado conflituoso é stressante e contrário à «lei de amenização progressiva» provocada pela conversa, na excelente definição de Gabriel de Tarde: «As discussões parlamentares parecem ser as únicas (...) que escapam a esta lei de amenização progressiva: podemos dizer que, nas nossas sociedades modernas, os fermentos da discórdia tendem a refugiar-se nos parlamentos como se de um último bastião se tratasse.»

Além do conteúdo da palavra, a TV dá-nos uma miríade de interessantes informações banais que passam não só pela audição como pela visão: tom de voz, sotaque, hesitações, respirações, gestos, risos e outros movimentos dos músculos faciais, utilização das mãos, cabeça e corpo em geral para a conversa, tiques, «bengalas» vocais e gestuais («ãs» e «uhms», movimento dos olhos, caneta, mão na cara ou passando pelo cabelo, etc).

Nesta comunicação não-verbal entram vestuário, adereços (relógio, anéis, pulseiras, "piercings"), maquilhagem, penteado, pintura de cabelo e unhas, estado de nervos (pela voz, mãos, movimento das pernas). Há ainda a comunicação resultante do relacionamento com o outro ou os outros convivas (a afectação, a distância física e espiritual, a entrega ou o pé-atrás, o à-vontade ou o receio).

A conversa, pela sua própria dialéctica, torna-se extremamente reveladora dos seres humanos. «O divertido da conversa é descobrir o que um homem realmente pensa, e depois contrastar isso com as enormes mentiras que ele esteve a dizer ao jantar e, se calhar, a vida inteira», escreveu em 1870 Benjamin Disraeli.

A dimensão na conversa do que «um homem realmente pensa» é de tal forma importante que a psicologia e a psicologia social, a psiquiatria, a psicanálise e a sociologia desenvolveram métodos de investigação baseados na conversa e na sua análise (que incluem por vezes gravação audio ou vídeo: o mesmo que a TV). Fazem-no porque as pessoas, a conversar, dizem o que dizem, dizem mais do que queriam dizer e «dizem» tudo o que não dizem. Os espectadores sabem que obtêm isso da conversa televisiva. Tal como os cientistas, aprendem muito a ver e a ouvir conversas, sejam elas importantes ou banais.

Em 1800, a escritora irlandesa Maria Edgeworth observava: «Não podemos julgar nem os sentimentos nem o carácter dos homens com perfeita exactidão a partir das suas acções ou das suas aparições em público; é das suas conversas descuidadas e das frases que ficam a meio que poderemos com maior probabilidade de êxito descobrir o seu verdadeiro carácter.» O que não diria esta autora se pudesse escrever sobre as conversações mantidas num lugar - a televisão - que faz mefistofelicamente a fusão entre as conversas descuidadas e as aparições em público.