Eduardo Cintra Torres

A Televisão à Conversa


O cinema teve a sorte de nascer sem som; ainda hoje, sendo ele amiúde palavroso, vamos ao cinema para ver. A televisão está sempre a falar, sempre a falar. Nasceu para se ver a falar as pessoas que apenas se ouvia na rádio. Não evoluiu para o predomínio da visualidade. Manteve-se no domínio da oralidade, até por razões económicas: fazer ver, como no cinema, é muito mais caro do que fazer ouvir.

A TV organiza-se pela palavra e não pela imagem. Pode ouvir-se televisão sem ver, mesmo que a sua dimensão visual seja importante (na entrevista de António Guterres a Maria Elisa depois da remodelação (RTP1), ouve-se o primeiro-ministro a justificar a mentira, mas vê-se o chefe do governo muito atrapalhado.)

A visualidade é inseparável da oralidade, mas é esta que estrutura a TV. Mesmo as séries como as "sitcoms" são folhetins de rádio com imagem. NA TV actual, a oralidade é, antes do mais, a conversa. Ela domina grande parte da programação. Que são telenovelas e "sitcoms" senão conversas com imagens? As séries não se distinguem nisso de muita literatura. "Para que serve um livro", pensou Alice logo no primeiro parágrafo das suas aventuras no País das Maravilhas, "sem imagens ou conversas?" E Laurence Sterne, no seu Tristam Shandy, dizia que "a escrita, quando realizada convenientemente (...), é apenas conversa com outro nome."

Também a TV é conversa com outro nome, ou outros nomes: séries, novelas, "talk-shows", "reality shows", entrevistas, debates... quantos nomes para a mesma coisa? Há alguma coisa mais importante do que falar? Até ao limite: uma heroína de Stendhal "não tinha nenhuma disposição para fazer amor; o que ela amava acima de tudo era uma conversa interessante."

A TV portuguesa fala que se desunha. De 20 a 26 de Julho, pululam programas de conversa: na RTP1, Praça da Alegria e Emoções Fortes (ambos aos dias úteis) e Teledependentes; na RTP2, Hora Viva (dias úteis), Personagens, Um Café no Magestic, Travessa do Cotovelo, Por Outro Lado, Andamentos e Artigo 37; na SIC, o SIC 10 Horas e O Bar da TV (dias úteis) e Ponto de Encontro; na TVI, Caras Lindas e Ilha da Tentação. Na SIC Notícias sucedem-se os programas de "conversa-luta" e de "conversa-troca", para usar as definições do cientista social francês Gabriel de Tarde há cem anos.

A esta lista acrescentam-se programas agora de férias - como os de entrevistas da RTP e da SIC - ou outros de muita conversa, como os magazines dos ricos e famosos, os programas infanto-juvenis e até as entrevistas dos telejornais.

O apetite pela conversa é antiquíssimo. A palavra faz o homem. Mas é nas sociedades mais participativas que ela assume lugar de honra, como a Grécia antiga (Platão "não" ensinava, conversava) ou a Roma do Séneca que escrevia "a conversa tem em si uma espécie de charme, um não sei quê insinuante e insidioso que arranca segredos de nós tal como o amor ou a bebida."

A partir da Renascença, assume-me a conversa como troca de ideias e alavanca do pensamento: "o mais frutuoso e natural exercício do nosso espírito é a meu ver a conferência", escrevia Montaigne no século XVI, quando só então a palavra conversação ganhava o lugar merecido para exprimir a troca de propósitos familiares.

A conversa ganha importância com a implantação dos costumes e regimes democráticos. Quanto mais conversa, menos conflito violento. De Tarde, na sequência de Tocqueville, explicava o prazer de conversar dos norte-americanos pela "influência do regime igualitário". Descrevendo a América no princípio do século XIX, Tocqueville referia que a democracia é muito faladora e que "os vendedores de ideias se contam por milhares." Assim é a TV em democracia. Conversa e regime entrelaçam-se.

Portugal demorou a apanhar o gosto pela conversa, como se vê pela sua evolução na TV. Antes do 25 de Abril, os portugueses conversavam menos, e a TV não conversava de todo: "nos sítios em que o Poder se manteve muito estável, podemos geralmente acreditar que a conversa foi sempre tímida e fechada", escrevia Gabriel de Tarde há um século.

Como grande parte da sociedade, a RTP era avessa à conversa. A televisão era, a este nível, "silenciosa". Nos telejornais, apenas se lia; os políticos do regime inauguravam coisas e visitavam sítios com música de fundo. Quando, em 1944, perguntaram em Lisboa a Ortega y Gasset o que lhe parecia Salazar, ele respondeu com ironia: "Bem, muito bem; não se pode governar melhor oito milhões de defuntos" - quer dizer, pessoas que não conversavam.

Há dias, um viajado "cameraman" francês em serviço em Lisboa dizia-me que a TV do mundo que mais o impressionara fora a da Coreia do Norte, porque era "muda" - no sentido em que não tinha conversa.

Marcelo Caetano cometeu o erro da sua vida ao criar as "Conversas em Família", que pareciam contrariar a ideia dos "milhões de defuntos". Enquanto Salazar, desconfiado da TV, a usava (tal como à rádio) para discursar, isto é, para impor a palavra sem diálogo, Marcelo, ao chamar "conversas" aos seus monólogos dialógicos, introduziu um elemento de enfraquecimento do seu poder: banalizou a sua figura e tornou-a "conversável". (O seu notável afilhado democrático, Marcelo Rebelo de Sousa, usa a TV para fazer diálogos monológicos, quer dizer, diálogos em que não contam as perguntas nem as conversas com os apresentadores do Jornal Nacional da TVI).

Onde não há conversa os conflitos tendem a resolver-se com violência. Talvez seja isso que explique o ciúme violento e assassino do Otelo de Shakespeare: "Eu sou negro, e não tenho aquela conversa mole que têm os cortesãos."

A presença da conversa na sociedade aumenta com a habituação à democracia, mas também com os tempos livres e a multiplicação dos tópicos para os diálogos. É natural por isso que prolifere também na TV, espelho da sociedade.

A TV enche-se, assim, de "talking heads", cabeças que falam sucedendo-se sem fim em cenários semelhantes e canais semelhantes. Mesmo sentados confortavelmente, os espectadores cansam-se às vezes de tantas conversas, e, como já Voltaire assinalava no seu tempo, elas tornam-se lugares-comuns. Aprende-se, porém, muita coisa pelo caminho com a conversa televisiva, mais do que a maioria dos pedagogos está pronta a aceitar. Mas isso é outra conversa.