Eduardo Cintra Torres

Amália "Era do Povo"


Ao sábio anticarisma de Amália correspondia uma atitude sem paralelo entre os maiores artistas: apesar de ser, desde os anos 40, da "alta roda", como se dizia, Amália manteve uma relação com as pessoas e as coisas do povo que era vital para o seu equilíbrio artístico.

Não admira que o culto por Amália tivesse uma expressão tão contínua nas camadas populares, patente no seu último espectáculo no Coliseu (RTP1): nada interessava que a voz já não fosse a mesma, porque ela era a mesma, "ela era do povo", "ela nunca deixou o povo", como disseram agora populares nas ruas e no cemitério. A gratidão que agora se ouviu na rádio e na TV era não só pela voz como também por Amália nunca ter traído a sua origem.

A "posse" de Amália exprimiu-se desde 1999 a propósito do lugar que caberia à memória da cantora - isto é, aos restos mortais: cemitério ("povo") ou Panteão (Estado)? O parlamento fez de Amália símbolo da nação: a cerimónia de trasladação teve função de (re)conciliação nacional, tanto como de coroação da homenageada, mas a trasladação corria o risco de criar divisões na sociedade. No cemitério, assim se exprimiram para a TV alguns populares: "não há direito nenhum que ma tirem daqui"; "ficamos sem ela - metem-na num buraco!"

Daí que o protocolo criasse uma solução destinada a reconciliar os que preferiam Amália num cemitério popular: a cerimónia da trasladação foi desenhada para unir toda a gente. É aqui que entra a televisão. A cerimónia não existiria neste formato sem a TV. Os acontecimentos mediáticos como este têm na TV a entidade integradora, através do qual o povo se vê a si mesmo e se reencontra com o poder e os símbolos da nação.

A tipificação da homenagem de Amália pela TV estava antecipadamente feita, no geral e nos mais pequenos detalhes, no estudo de Daniel Dayan e Elihu Katz, "A história em directo - os acontecimentos mediáticos na televisão" (Minerva Editora, Coimbra, 1999).

A Igreja tinha a seu cargo a primeira parte da cerimónia, no Cemitério dos Prazeres, e cumpriu todos os preceitos. O povo foi ali englobado sob o manto da materialidade e da espiritualidade religiosa.

A saída do cemitério significou a entrega de Amália ao Estado. Os representantes do Parlamento na missa estariam também depois no Panteão. Aí, esperava-os o Presidente da República, outro símbolo da Nação. Amália entrava depois de morta para o mundo da política, ficando a descansar ao lado de presidentes e políticos e de poetas que foram também políticos ou de quem a política se apropriou. Seguindo o apelo do Estado e da TV, o povo acorreu em número suficiente ao largo amplo do Panteão. As câmaras deram o povo das ruas ao povo em casa.

Todavia, o lado imprevisível dos eventos mediáticos ocorreu mesmo, e no lugar simbólico que cabia ao povo como entidade dominante: as ruas de Lisboa. O Parlamento, ou o protocolo, cometeram um erro grave ao anunciarem o percurso do "cortejo", ao chamarem o povo às ruas e em especial à Rua de S. Bento e, depois, ao roubarem ao povo a possibilidade de formar cortejo e de o seguir até ao Panteão. Terão tido, e com razão, medo de que o povo não aparecesse? É provável, pois a cerimónia de multidão já acontecera com o enterro, e ninguém morre duas vezes. Mas, nesse caso, e sendo a TV a entidade integradora da cerimónia nacional, não tinha sentido anunciar o percurso e chamar o povo à rua.

O que a TV acabou por mostrar foi a "correria" da "carreta" pelo percurso e a impossibilidade de se formar cortejo: "a gente veio a correr, a correr, não há direito, não há direito", dizia alguém em frente da casa de S. Bento. "Estava convencido de que ia ser como o funeral", disse outro. E outro ainda: "Os senhores da alta não esperaram pelo povo", "vinham atrás nos seus carros, não ligaram ao povo." E uma popular disse com displicência para uma câmara de TV: "E depois queixam-se de que não há química entre o povo e o Governo."

A Igreja, ou a monarquia britânica, jamais fariam o erro crasso de prometer um cortejo e impedi-lo depois pela velocidade da "carreta". As imagens da saída do carro funerário do cemitério e pelas ruas contrariam a natureza das cerimónias de coroação transformadas em eventos mediáticos, como o foi esta trasladação. Homens e mulheres, incluindo velhotas, tentavam correr atrás do carro funerário, a que se pegaram apenas, até ao fim, três homens, um deles envergando calções e uma apropriada "t-shirt" dum "Grande Prémio de Atletismo". A estes gatos-pingados se juntou a certa altura um velhote numa bicicleta e um outro ciclista, com o equipamento do Benfica.

A dignidade e função de reconciliação eram assim postas em causa pela própria entidade organizadora, o Parlamento. Ao invés de conciliar o povo amante de Amália e descrente dos "da alta" com a honraria do Poder & Panteão, o falso "cortejo" deu razão aos populares que mantêm uma antiga desconfiança do poder. Foi a TV a dar este lado imprevisto e a romper a negociação entre os poderes organizadores da cerimónia. Nesse momento, os jornalistas televisivos integrados nos ritos voltaram a ser totalmente jornalistas.

E, se estava a ver duma nuvem aqueles três rapazolas e o velho ciclista correndo atrás da sua urna pelas ruas desertas de Lisboa, Amália decerto sorriu e disse-lhes "obrigada".